Agora é a sério: o Cristo-Rei é inadmissível. Não o próprio, entenda-se, que tem certamente lugar no reino dos Céus, embora não nesta república nada dada a realezas, mas a sua gigantesca estátua, na margem sul do rio Tejo. Porquê? Porque a sua dimensão e a sua forma em cruz são um atentado à laicidade nacional.
É o que resulta da decisão do tribunal administrativo de Rennes, que ordenou a remoção de um monumento, de oito metros de altura, a São João Paulo II, em Ploërmel, no departamento de Morbihan, na Bretanha francesa, por entender que o mesmo infringe as normas vigentes sobre a laicidade do Estado.
A estátua do santo Papa polaco, que decerto foi menos perseguido pelos comunistas da sua terra natal do que o é agora na pátria da revolução francesa, está enquadrada por um monumental arco de pedra, por sua vez encimado por uma enorme cruz que, pela sua colocação e as suas dimensões, têm, segundo o veredicto judicial, «características ofensivas» do princípio constitucional da laicidade. Patrick Le Diffon, autarca de Ploërmel, para retirar ao caso qualquer conotação anticlerical ou persecutória dos cristãos, afirmou que o monumento fora erigido ao homem de Estado e não ao pontífice. Esfarrapada desculpa que não colhe, até porque Karol Wojtyla está representado com os paramentos litúrgicos, ou seja, como Papa e não como estadista.
Se uma cruz, um arco e um santo paramentado são um insulto à laicidade, não o serão também a fachada de Notre Dame e as torres sineiras de todas as igrejas francesas, também elas de grandes proporções e, em geral, rematadas por um crucifixo? E a estrela de David das sinagogas judias, ou a meia-lua das mesquitas muçulmanas, não serão também agressivas para os incrédulos? E as pinturas e esculturas de temática religiosa do Louvre e outros museus, por exemplo, não serão também um ataque a quem não crê? Não seria então prudente que, para além da remoção da estátua de São João Paulo II, se destruíssem também todos esses sinais da cultura religiosa da filha primogénita da Igreja?
Esta fúria iconoclasta não é nova, nem exclusiva do laicismo francês. É velha como o fanatismo, religioso ou ateu, de todos os tempos e eras. Também os talibãs e os guerrilheiros do dito Estado Islâmico pensam e agem do mesmo modo: por este motivo já destruíram inúmeros monumentos históricos e tesouros religiosos de incalculável valor. Pelo contrário, a Igreja católica, embora também tenha tido, mais por excepção do que por regra, atitudes desta natureza, colocou no centro da emblemática praça de São Pedro, em Roma, um obelisco egípcio, como pedestal da cruz de Cristo. Também muitos papas, autênticos mecenas da cultura, coleccionaram obras de arte pagã, que ainda hoje se podem contemplar nos museus vaticanos.
O laicismo está para a laicidade como o fundamentalismo está para as religiões: em ambos os casos mais não são do que perversões autoritárias e tirânicas, sob a aparência, respectivamente, do respeito pela liberdade e, até, de Deus.
A laicidade não é uma invenção da revolução francesa, nem do iluminismo, mas cristã, porque é no Evangelho que se declara, peremptoriamente, a separação entre o poder temporal e o espiritual: dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus (Mt 22,21). O próprio Cristo, ao contrário de outros lideres religiosos, rejeitou sempre a tentação do poder e recusou dar, mais de uma vez, qualquer conotação política à sua realeza exclusivamente sobrenatural. O laicismo sim, é uma herança do terror revolucionário francês, que teve seguimento nos regimes totalitários nazi e comunista, ambos também furiosamente contrários à liberdade religiosa.
Como disse recentemente o Papa Francisco, “Na óptica cristã, razão e fé, religião e sociedade são chamadas a iluminarem-se reciprocamente, apoiando-se uma à outra e, se necessário, purificando-se mutuamente dos extremismos ideológicos em que podem cair. A sociedade europeia inteira só pode beneficiar de uma revitalizada conexão entre os dois âmbitos, tanto para enfrentar um fundamentalismo religioso que é inimigo sobretudo de Deus, como para obstar a uma razão ´reduzida` que não honra o homem” (Discurso ao Conselho da Europa, 25-11-2014).
Do fanatismo laicista e do fundamentalismo religioso, livrai-nos Senhor! E viva Cristo-Rei que, da margem sul do Tejo, abraça Lisboa e esta terra de Santa Maria, enquanto que, do outro lado do Atlântico, sorri para o Rio de Janeiro do alto do Corcovado e abençoa a terra da Vera Cruz!
Fonte: Observador
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