As paixões que suscitam e animam as revoluções, e que por estas são renovadas e fortalecidas, degeneram invariavelmente no ódio sem trégua ao regime a que vieram pôr fim, aos seus representantes e aos seus símbolos. O ódio do passado ainda há pouco terminado, conjugado com a necessidade de legitimar as novas circunstâncias alcançadas, motivam, e aparentemente justificam, a propaganda que desenha com as linhas mais disformes o inimigo caído, que pinta com os mais vivos contrastes a miséria do sistema destruído e o brilho da revolução, que sublinha a virtude dos inovadores atribuindo todo o género de obras escabrosas e inclinações grotescas aos vencidos. Como da calúnia, especialmente se exercida com militância, algo sempre fica, a historiografia absorve frequentemente a propaganda concebida com intuitos políticos, compondo uma versão canónica dos factos muito distante da verdade histórica. A França revolucionária empenhou-se em perpetuar uma memória obscura da França do Antigo Regime; e Luís XVI e Maria Antonieta foram coimados com infâmias bem merecedoras da guilhotina, se realmente lhes coubesse a sua culpa.
Os ventos de revolução que sopraram em Portugal em Vinte e em Trinta também foram pródigos em libelos acusatórios ao absolutismo e, com especial sanha, alvejaram D. João V. O rei frívolo, de piedade hipócrita, visitador de celibatárias nas suas celas, que delapidou o tesouro público, e a montanha de ouro escavada no Brasil, em fausto – é o retrato triunfante encomendado pela propaganda revolucionária. Uma vez mais, a propaganda substitui-se à história. Aquele retrato não poderia ser mais diferente do modelo. O estudo dos originais contemporâneos – primeiro labor do historiador – giza uma semelhança mais perfeita do homem e do rei.
Possuía uma energia infatigável, presidindo ininterruptamente, por muitas horas, a conselhos de estado. Numerosos são os relatos corroborando as renúncias do rei em prol do interesse nacional. Os testemunhos são unânimes em atestar a sua inteligência e sensatez. Muito culto, conhecia profundamente os idiomas Latino, Italiano, Francês e Espanhol. A sua política externa foi prudente, mas assertiva; preferiu manter a equidistância face às controvérsias europeias, salvando a paz no reino, adquirindo o prestígio que o alcandoraria a mediador entre beligerante europeus; mostrou muita energia, porém, sempre que foi necessário afirmar os direitos de Portugal. Foi uma época de brilho inigualável da nossa diplomacia. Os governos a quem Portugal exigia satisfações apressavam-se a dá-las; os Estados que se viam privados das relações diplomáticas com o reino afadigavam-se em buscar a reconciliação.
A fama de perdulário acompanha até este dia a memória de Dom João V. Mas não terá sido bem empregado o dinheiro com que se fez erguer o Aqueduto das Águas Livres? «Se Lisboa é grande, se é populosa – escreve Frei Cláudio da Conceição - «só a esta obra se deveu. Sem esta providência, Lisboa jamais passaria dos limites do bairro de Alfama…». O Convento de Mafra valeu a Portugal a admiração dos estrangeiros e é símbolo adequado da importância que o reino assumia nos assuntos da Europa ao tempo e do sentido de orgulho nacional de que o rei sempre foi garante. A Academia Real de História, à qual o Magnânimo devotou contínuo interesse, é uma das obras que realizou favorecendo as letras e as ciências. As bibliotecas de Mafra e de Coimbra são outras duas, que permanecem; e os diversos incentivos que fez a muitos estudos confirmam o cuidado do rei para com o ofício do saber.
A sorte das armas sorriu a Portugal no reinado de D. João V. Em 1716, atendeu à súplica do Papa Clemente XI e pôs a marinha portuguesa, que se ocupara em reorganizar e engrandecer, ao serviço da Cristandade, subjugando os corsários turcos na batalha de Matapão. Na Índia, sucumbem à força portuguesa sobre as ondas os reis de Canará e de Sunda. Lopo de Almeida arrasa, em 1717, a cidade de Porpatan e o Régulo de Cudale é derrotado por João de Saldanha, sendo conquistada Bicholim. O marquês de Castelo-Novo triunfa sobre Bonfulóes e recupera territórios do Estado de Goa que se julgariam irremediavelmente perdidos. Também na África foi este reinado venturoso na guerra. Em Angola, o príncipe de Conda rende-se a D. João Manuel de Noronha; Rafael Álvares da Silva vence em Moçambique o Princípe Changamira.
O reinado do Magnânimo corresponde a uma era verdadeiramente doirada do poder e do conceito de Portugal no estrangeiro. Nos assuntos internos, registou-se notável incremento da cultura, de que são vestígios as magníficas obras públicas; e o rei mereceu do povo o cognome que ilustra e preserva a memória da sua benignidade para com os pobres, que sempre beneficiaram da sua generosidade em todas as ocasiões de escassez e calamidade, e para com os artistas e intelectuais do reino, que no monarca encontraram um excepcional patrono e mecenas. A figura de D. João V procura ainda redenção junto dos nossos, para o que este texto pretende ser um modesto contributo. E outras muitas erratas teriam que ser apostas à história de Portugal como parte do esforço de reconstrução identidade nacional.
Hugo Dantas
Fonte: Nova Portugalidade
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