Há tempos, num textozinho, um académico voltava - impenitente e ignorante que é - a oferecer o retrato de um Portugal beato, obscurantista, imóvel e odiosamente hostil às letras. Ora, chegou a hora de estes fulanos deixarem de lado a galeria de quadrinhos anedóticos à Oliveira Martins ou à Antero e se debruçarem sobre a imensa documentação acessível a qualquer investigador no arquivo nacional e nos arquivos regionais.
Os acontecimentos e a profusão dos testemunhos contemporâneos - suficientemente ilustrados por dados estatísticos - confirmam-no: no fim do Antigo Regime, o ensino entrou subitamente em colapso. O analfabetismo estrutural que doravante marcaria profundamente a sociedade portuguesa na segunda metade do século XIX e todo o século XX, não terá sido herança do Portugal antigo, mas do Liberalismo. De Ernesto José Caldas, na História de um fogo morto, retiro o seguinte elucidativo episódio do saque e destruição sistemática das bibliotecas conventuais e monásticas que cobriam o território português:
"As livrarias a monte. Tudo roubou. Primeiro acudiam os que se tinham na conta de entendidos; depois os curiosos; por último a canalha que roubava para vender a peso. As mercearias encheram-se de missais, de breviários, de sermonários, de tudo quanto constituía o fundo dessas bibliotecas".
Os 300.000 volumes que escaparam à rapina ou à destruição constituiriam, talvez, um décimo dos livros existentes em Portugal nos finais do Antigo Regime. Nem as bibliotecas de particulares se salvaram à vaga de ódio e terrorismo cultural. Seria importante lembrar que, entre 1833 e 1836, foram sequestradas as livrarias dos "rebeldes" - ou seja, dos miguelistas - as quais possuíam dezenas de milhares de títulos. Destes últimos (os "rebeldes") deram entrada na Biblioteca Nacional cerca de 30.000 volumes, pelo que se pode imaginar as dezenas ou mesmo centenas de milhares de obras roubadas, queimadas e perdidas. A elite cultural do país desapareceu, pura e simplesmente.
MCB
Fonte: Nova Portugalidade
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