segunda-feira, 9 de novembro de 2020

O presente e o futuro de uma reinvenção social iniciada

 Nunca ceda à vitimização, inimiga visceral da autorresponsabilidade de cada sujeito individual ou coletivo. Apenas a autorresponsabilidade constitui o primado moral da condição humana.


A moral individual vive fundida na moral social. A tradição remonta aos Dez Mandamentos, do Antigo Testamento, quando foi tipificada magistralmente em poucas, simples e intemporais proibições escritas, por isso resistentes ao desgaste do tempo: Não matarás!…Não furtarás!

Com mais de três milénios, a tradição continua no âmago da civilização ocidental na qual o poder supremo da moral sempre determinou o sucesso ou o fracasso das sociedades. Tal poder nasce da clarificação de interditos, o que não podemos fazer nem tolerar que outros façam, cuja quebra deve implicar consequências punitivas que oscilam entre a censura social e a penalização judicial. Uma sociedade justa é aquela que não tolera a quebra dos interditos protectores da condição humana e da vida colectiva.

Uma vez assegurada a ordem moral, torna-se possível viver em sociedades livres, democráticas e prósperas porque capazes de serem tolerantes, plurais, férteis, dinâmicas nos mais variados domínios sem resvalarem para falhanços sucessivos, desordem, tensões, violência, autodestruição, anomia.

Como o tempo histórico que vivemos é o do falhanço moral espelhado em crises endémicas sucessivas, as gerações vivas têm o dever de refundar a moral social ou a ordem moral coletiva fazendo germinar a semente lançada, em Portugal, pela profunda renovação política e partidária em curso.

Os dez mandamentos da sociedade inteligente, justa e próspera

1Nunca ceda à vitimização, inimiga visceral da autorresponsabilidade de cada sujeito individual ou coletivo. Apenas a autorresponsabilidade constitui o primado moral da condição humana.

 2Nunca quebre a hierarquia entre a autorresponsabilidade e a solidariedade. Ambas são fundamentais, todavia a subversão dessa ordem, colocar a solidariedade antes da autorresponsabilidade, sobrecarrega as atitudes e comportamentos responsáveis e premeia as atitudes e comportamentos parasitas. A prazo, os últimos ganham ascendência sobre os primeiros em prejuízo do destino dos povos e da segurança do mundo.

3Nunca confunda a sociedade (aberta a todos, o espaço por excelência da democracia onde tudo pode ser reinventado por qualquer indivíduo, e sem observância de hierarquias) com as suas instituições (reservadas apenas aos seus membros para que cumpram a sua missão social específica protegidos de frivolidades e intromissões abusivas, em especial as vindas do campo político, sendo a hierarquia, a autoridade e a ordem internas indispensáveis ao bom funcionamento das instituições). A tensão entre a sociedade aberta (igualitária) e a instituição fechada (hierarquizada) constitui a garantia simultânea da vitalidade da democracia e da qualidade da vida coletiva. Nunca se esqueça que estão em causa instituições autónomas entre si que garantem os afectos e a educação/família, o ensino/escolas, a religião/igrejas, a saúde/hospitais, a segurança/polícias, a justiça/tribunais, a economia/empresas, a defesa/militares, o desporto/clubes-ginásios, entre outras, e que são elas que asseguram a qualidade na vida colectiva, não a retórica discursiva política, artística, intelectual ou de outra natureza.

4Nunca reconheça dignidade e honestidade na defesa da liberdade individual ou da democracia a quem, ao mesmo tempo, não defenda a autoridade e a ordem, nem tolere aqueles que, por norma, contestam a autoridade institucional de pais, professores, polícias, médicos, enfermeiros, militares, entre outros. Quando compartilhada por diversas figuras sociais de referência, a autoridade é fundamental na regulação da vida colectiva e, ao mesmo tempo, plural, democrática, justa, civilizada.

5Rejeite liminarmente teorias, princípios, ideologias ou leis cujos pressupostos não garantam, com absoluta clareza, por um lado, a autonomia entre o Estado e a Sociedade e, por outro lado, a autonomia entre a Sociedade e cada uma das suas Instituições. Sem tais garantias a autorresponsabilidade institucional fica fragilizada e, desse modo, crescem os abusos, os vícios, a corrupção, os incumprimentos, a desregulação de atitudes e de comportamentos, as disfuncionalidades das instituições que acabam por atingir a vida colectiva no seu conjunto. Está em causa a observância do princípio da democracia social, que se resume ao alargamento à vida quotidiana do ideal político proposto por Montesquieu, no século XVIII, o ideal da separação de poderes entre os diferentes órgãos de soberania como garantia de liberdade: poder legislativo (parlamento/assembleia), poder executivo (governo) e poder judicial (tribunais).

6Nunca ceda na defesa da família e da nação, as duas instituições que melhor garantem a autorresponsabilidade coletiva por ser nelas que os indivíduos estabelecem os laços afetivos mais sólidos e perduráveis no tempo, os que transitam de geração em geração, uma vez que os mesmos estão directamente ancorados num espaço exclusivo no qual a família e a nação foram e têm de continuar a ser absolutamente soberanos. É o caso do lar cuja protecção e dignidade da família podem implicar fechar a porta da rua. É o caso das fronteiras territoriais nacionais cuja segurança e dignidade da nação podem implicar restrições à imigração, severas se necessário, constituindo a imigração ilegal uma quebra grave da autorresponsabilidade coletiva da sociedade originária, o que retira suporte moral a esse tipo de migrantes que, desse modo, autoposicionam-se contra o mais elementar civismo. Este apenas se manifesta quando e onde existam compromissos entre a tradição e a modernidade, quando a última não rompe com a primeira limitando-se a renová-la, o que implica a recusa liminar de conflitos, e muito menos rupturas, entre a defesa da família (como a sua), da nação (como a portuguesa, brasileira, japonesa ou norte-americana), do supranacional (como a União Europeia) ou do mundial (como a Organização das Nações Unidas, ONU). Sempre que o mundial ou o supranacional se posicionarem contra a nação (contra a soberania das fronteiras nacionais) ou contra a família (contra a soberania do lar) atentam contra a própria condição humana, o que é imoral.

7Rejeite liminarmente teorias, princípios, ideologias ou leis cujos pressupostos indiciem a fragmentação apriorística da sociedade, uma vez que todos os seres humanos nascem livres e iguais. Recuse a fragmentação entre maioria e minoriashomens e mulheresbrancos e negrosricos e pobresmaus e bons e demais equiparáveis. Ceder ao pressuposto da fragmentação social é admitir que o presente nasceu de injustiças históricas. Como jamais será possível responsabilizar de forma directa e objectiva as gerações de épocas passadas, sobram apenas as gerações vivas que lhes sucederam, pelo que responsabilizá-las por um tempo histórico anterior à sua existência constitui uma quebra grave do princípio da justiça humana: nunca julgar os filhos pelos pais. Predisposições mentais contra este princípio instigam a manipulação anacrónica da memória social, o que orienta as relações entre indivíduos, comunidades e povos para tensões e conflitos reparadores de supostas injustiças sociais do passado, enclausurando uns na vitimização e outros na culpabilização, o que afasta irreversivelmente a relação entre dos seres humanos da busca comum e permanente da verdade, honestidade, consenso, tranquilidade, cooperação.

8Nunca considere defensores da sua sociedade aqueles que não a concebem como Edmund Burke, uma associação entre os mortos, os vivos e os ainda por nascer. Os que o fazem dignificam a história dos seus antepassados, promovem a partir dela a dignidade das gerações do presente, assim como asseguram a dignidade das gerações futuras, uma cadeia afectiva sem a qual não é possível manter o equilíbrio existencial e a dignidade dos povos.

9Censure gravemente indivíduos e instituições responsáveis pelo endividamento do Estado. Como este modela a vida social, e tendo em conta que o respeito pela propriedade individual e privada constitui um núcleo fundamental de regulação dessa mesma vida social, indivíduos, famílias, empresas, associações, clubes desportivos e demais instituições são arrastados para uma relação pouco responsável com a propriedade e, em inevitáveis ciclos de crise económica, o descalabro financeiro tende a ser socialmente disseminado num momento em que o Estado se transforma no pior inimigo da Sociedade. Aquele torna-se obrigado a oprimir financeiramente a última impondo-lhe mais e mais impostos e taxas, o que corrompe os fundamentos materiais da liberdade individual e colectiva e da prosperidade individual e colectiva, desregulando a vida social no seu conjunto. Nesse descalabro cuja génese é a quebra, pelo Estado, do interdito moral do endividamento está também em causa o desrespeito grave pelas gerações antecedentes que não deixaram dívidas soberanas aos seus sucessores, mesmo sacrificando o seu conforto na sua época, assim como um ainda mais severo atentado contra as gerações futuras que ficam impedidas de nascer livres e donas do seu destino. De resto, a corrupção é, na substância, uma consequência inevitável da má gestão moral da propriedade instigada pelo Estado.

10Nunca separe, na relação com os seus semelhantes, a árvore do pensamento (o pensamento do intelectual, académico, escritor, ensaísta, comentador, notável) da floresta do pensamento (o pensamento social que os indivíduos produzem por si mesmos à medida que se relacionam quotidianamente uns com os outros nas famílias, transportes, salas de aula, empregos, cafés, espaços de lazer, entre outros). Quebrar a complementaridade entre o pensamento individual e o pensamento coletivo (ou social), sobrevalorizando um em detrimento do outro, é o mesmo que rejeitar a plenitude da condição humana que se define, acima de tudo, pela plenitude do pensamento. Tal quebra alimenta fenómenos de alienação mental, ora instigados pelo senso comum quando sobrevaloriza a afectividade contra a racionalidade, ora instigados por intelectuais e académicos cujo narcisismo conduz à ditadura do pensamento. Este define-se pela separação dos seres humanos entre os próprios, a casta pensante, e os demais comuns, a massa não pensante. Daí que o termo populismo, quando usado em sentido acusatório nas democracias plurais, seja revelador da ditadura da casta pensante.

Gabriel Mithá Ribeiro

Fonte: Observador

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