16 de Julho de 2021
Commemoratio Beatæ Mariæ Virginis de Monte Carmelo
Este encontro tem o privilégio de ter lugar numa cidade de passado glorioso, na qual os seus governantes souberam aplicar com sabedoria aquele bom governo que encontra na Religião o princípio inspirador e informador de cada reino temporal. A Sereníssima República combinou todos os aspectos positivos da monarquia, da aristocracia e da democracia num sistema desejado e pensado para favorecer a prática da Religião, o honesto bem-estar dos seus cidadãos, o desenvolvimento das artes e dos ofícios, a promoção dos comércios e dos intercâmbios culturais, a ajuizada gestão da coisa pública e a prudente administração da justiça. Enquanto Veneza permaneceu fiel à sua alta vocação, prosperou em todos os campos; quando o último dos seus Doges se deixou corromper pela Maçonaria e pelas falsas filosofias do Iluminismo, desabou em poucos anos, condenada a ser invadida, saqueada, despojada dos seus tesouros.
Da história da Sereníssima podemos tirar uma grande lição para os tempos actuais e uma severa advertência para o destino da nossa Pátria e das nações em geral.
O que indica o declínio de um império é a traição dos ideais que o tornaram grande, a perversão da autoridade, a corrupção do poder, a resignação do povo. Nunca como nesta época pudemos constatar que o destino do mundo inteiro, e em particular da Europa e das nações ocidentais, está irremediavelmente marcado por todos estes elementos, que anunciam inevitavelmente a sua queda, a sua ruína.
A traição dos ideais, da cultura, da civilização, do conhecimento, das artes, encontra a sua causa na apostasia da Fé, no ter rejeitado dois milénios de Cristandade e no querer remover, com a Cancel Culture, até mesmo a memória histórica. O que foi plasmado na era cristã pelo sangue dos Mártires, pelo testemunho dos Confessores, pela doutrina dos Doutores da Igreja, pelo Magistério dos Papas e por todo um tecido de laboriosa caridade que permeava todas as áreas da vida, é rejeitado com o constrangimento irritado dos renegados no poder.
A perversão da autoridade fez com que os governantes, tanto na esfera civil quanto na religiosa, deixassem de cumprir o propósito para o qual ela existe, desviando-se do bonum commune. Assim, depois de ter rejeitado o direito divino dos soberanos e reivindicado a origem popular do poder do Estado republicano, em nome de supostos direitos do homem e do cidadão, a nova classe política revolucionária mostrou-se pronta para se vender a quem pagar mais, rebelde a Deus e àqueles que diz representar. As mirabolantes promessas da democracia, da liberdade e da soberania popular foram transgredidas na ausência de moral cívica, de sentido de dever, de espírito de serviço. Nascida como aplicação social dos princípios revolucionários inspirados na Maçonaria, a noção de Estado moderno revelou-se mais um colossal engano contra as massas, às quais também foi arrebatada a consolação de uma Justiça divina que moderasse os excessos do tirano. É o ímpio grito do Crucifige perpetuado no tempo. Depois de duzentos anos, compreendemos como se desenrolou essa fraude para fazer crer às massas que podem determinar, com base na mera maioria numérica, o que é bom e o que é mau, independentemente da Lei natural e dos Mandamentos dos quais o Senhor é o sábio autor. Esta ímpia torre de Babel mostra o colapso dos seus fundamentos exactamente no momento em que parece mais poderosa e destrutiva. E isso é motivo de esperança para nós.
Desmorona o ídolo da igualdade, blasfema negação da individualidade e da unicidade de cada homem, em nome de um esmagamento em que a diferença é considerada com suspeita, a autonomia de juízo é estigmatizada como anti-social, os dotes intelectuais são uma falta, a excelência profissional um perigo, o sentido de dever um odioso obstáculo. Nesta escura prisão sem grades tangíveis, reconhece-se liberdade de expressão apenas ao pecado, ao vício, ao crime, à ignorância, à feiura: porque o que é único em cada homem, o que o torna especial, o que o eleva acima da massa informe, é uma intolerável demonstração da omnipotência de Deus, da infinita sabedoria da Sua criação, do poder da Sua graça, da incomparável beleza da Sua obra.
Desmorona também o mito da falsa ciência, rebelde, como o seu inspirador, à harmonia do Cosmos divino. Quis-se substituir a humilde procura do conhecimento e das regras que regem a Criação pela luciferiana presunção de demonstrar, por um lado, a inexistência de Deus e a Sua inutilidade para a salvação da humanidade, e, por outro, a insana divinização do homem, que se considera senhor do mundo enquanto só pode ser seu guardião, de acordo com as normas eternas estabelecidas pelo Criador. E onde a sábia consciência da própria fragilidade tinha permitido grandes descobertas para o bem da humanidade, hoje o orgulho da razão faz nascer monstros sedentos de poder e de dinheiro, mesmo à custa de dizimar a população mundial.
Desmoronam as falsas ideologias do Liberalismo e do Comunismo, já definhadas após décadas de enormes desastres políticos, sociais e económicos, e hoje unidas e aliadas como espectros de si mesmas, no louco projecto da Nova Ordem Mundial. As proféticas palavras dos Papas sobre estas pragas das Nações são confirmadas pela constatação de que ambas eram faces da mesma moeda: uma moeda de desigualdade sob o pretexto da equidade, do empobrecimento dos povos sob as espécies da justa distribuição da riqueza, de enriquecimento de poucos com a promessa de mais oportunidades para muitos.
Desmoronam os partidos políticos e a suposta oposição entre direita e esquerda, filhas da Revolução e ambas instrumentais ao exercício do poder. Negados os ideais que ainda os inspiravam, pelo menos nominalmente, até às últimas décadas do século XX, os partidos transformaram-se em empresas, acabando por criar um fosso intransponível entre a agenda que os move e as reais necessidades dos cidadãos. Na ausência de princípios inspiradores e de valores inegociáveis, esses partidos recorreram aos seus novos patrões, a quem os financia, a quem decide os seus candidatos e orienta a sua acção, que impõe as escolhas. E se a retórica atribuía ao “povo soberano” o poder de nomear quem o representasse nos Parlamentos e reconhecia ao voto a mais alta expressão da “democracia”, hoje quem governa olha com desconfiança e com incómodo para quem quer destituí-los e expulsá-los, precisamente, com o voto.
Desmorona a ilusão de que possa haver uma Justiça onde as leis dos Estados não são inspiradas no bem comum, mas na manutenção de um poder corrupto e na dissolução do corpo social. E onde a Lei de Deus é banida dos tribunais, vigora a injustiça, a honestidade é punida, o crime e o delito são recompensados. Onde a Justiça não é administrada em nome de Deus, os Magistrados podem legislar contra o Bem, tornando-se inimigos daqueles que deveriam proteger e cúmplices daqueles que deveriam condenar.
Desmorona o engano da liberdade de informação, mostrando a desoladora multidão de servos e cortesãos dispostos a silenciar a verdade, a censurar a realidade, a subverter os critérios de juízo objectivo em nome do interesse partidário, do desejo de enriquecimento, da ebriez de uma visibilidade efémera. Mas se o jornalista, o editor, o ensaísta, não têm mais um princípio imutável que os inspira, que encontra no Deus vivo e verdadeiro o parâmetro infalível para compreender e interpretar o que é passageiro, a liberdade torna-se licenciosidade, a escravidão ao poder torna-se regra e a mentira norma universal.
Desmorona todo um mundo de falsidades, de enganos, de desonestidades, de horrores e de feiuras, que por mais de dois séculos nos impôs como modelo tudo o que é anti-humano, anti-divino e anti-crístico. É o reino do Anticristo, onde o transumanismo desafia o Céu e a natureza, no eterno grito do Inimigo: Non serviam!
Mas o que, hoje, vemos realizar-se diante dos nossos olhos, constitui a essência de um projecto louco e infernal ontologicamente destinado ao fracasso; e não é apenas uma “decadência”, como aconteceu ao longo da História a tantos impérios agora enterrados sob as cinzas e os escombros do tempo: é o fim de uma época que se rebelou contra o primeiro princípio do universo, contra a natureza das coisas, o fim último do homem. Uma época que se rebelou contra Deus, que presumiu poder desautorizá-Lo e destroná-Lo, que pretendeu e ainda pretende blasfemar contra Ele, poder eliminá-Lo não só do presente e do futuro, mas também do passado. Uma era plasmada pelos servos do Inimigo de Deus e do género humano, pelas seitas maçónicas, por lobbies de poder subservientes ao Mal.
Poderíeis pensar que esta é uma visão decididamente apocalíptica do presente e do que está por vir; uma visão dos Últimos Tempos, em que os poucos remanescentes fiéis ao Bem serão banidos, perseguidos e mortos, assim como foi perseguido e morto Nosso Senhor e inúmeras multidões de mártires no início da era cristã. Diante desta loucura, não bastam as respostas das ideologias humanas, assim como não basta um olhar desprovido de transcendência. O epíteto de “apocalípticos” – que nos é dirigido por aqueles que deveriam saber o quão redutivo e, muitas vezes, dissimulado é atribuir o rótulo de “negacionista” ou “teórico da conspiração” – trai uma visão terrena, em que a Redenção representa uma opção entre as tantas, juntamente com o marxismo ou outras filosofias. Mas o que devo pregar, como Bispo, «a não ser Jesus Cristo e este crucificado» (1 Cor 2, 2)?
Mas as minhas palavras, nesta ocasião, não querem ser palavras de desespero, nem querem instilar medo pelo futuro que parece preparar-se para nós.
É verdade: este mundo rebelde e escravo do Diabo, sobretudo naqueles que o governam com o poder e o dinheiro, está a fazer-nos guerra e prepara-se para uma batalha feroz e implacável, enquanto pretende reunir em torno de si tantos aliados quanto possível, mesmo entre aqueles que preferem não combater por medo ou por interesse. A cada um deles promete uma recompensa, garante um prémio que retribui a sua subserviência à causa ou, pelo menos, a abstenção de combater do lado oposto. Promessas de sucesso, de riqueza, de poder que sempre seduziram e corromperam muitos ao longo da História: há sempre trinta denários prontos para o traidor.
E o que é mais significativo, é que, enquanto o Inimigo declara abertamente a sua hostilidade, quantos deveriam ser os nossos aliados e até mesmo os nossos generais, persistem em ignorá-lo, em negá-lo, em depor as armas diante da ameaça que se aproxima. Em nome de um pacifismo insano, prejudicam a verdadeira paz, que é a tranquilidade da ordem e não feita vil e imbele para aqueles que nos querem destruir. Nisso, como dizia há pouco, consiste a verdadeira perversão da autoridade: ter falhado no fim para a qual existe, com a cumplicidade dos moderados, dos mornos que Nosso Senhor vomitará da Sua boca.
Permiti-me exortar-vos a não desistirdes e a não vos deixardes seduzir por aqueles que, movidos pelo desejo de não verem comprometido o seu papel de supostos mediadores na perpetuação de um sistema corrupto e corruptor, insistem em não querer reconhecer a gravidade da situação presente e deslegitimam aqueles que a denunciam como “teóricos da conspiração”. Se existe uma ameaça concreta à salvação dos indivíduos e do género humano; se há uma mente por trás desse projecto articulado e organizado; se a acção de quem a põe em prática é claramente voltada para o mal, a razão e a Fé estimulam-nos a descobrir os seus autores, a denunciar os seus propósitos, a impedir a sua execução. Porque se diante de tal ameaça permanecêssemos inertes e, mais, tentássemos negá-la, tornar-nos-íamos cúmplices e cooperadores do mal, e falharíamos no nosso dever de Verdade e Caridade para com os nossos irmãos.
Mas se é verdade que existe indiscutivelmente esta ameaça que paira sobre os bons, sobre os honestos, sobre os que ainda permanecem fiéis a Nosso Senhor, também é verdade que esta ameaça, pela sua própria natureza, está destinada à derrota mais flagrante e devastadora, porque não questiona apenas os homens, mas o próprio Deus, toda a Corte celestial, as multidões dos Anjos e dos Santos e toda a Criação. Sim: até a natureza, obra maravilhosa de Deus, se rebela contra essa violência. E entre a vitória final do Bem, certíssima, e este presente de trevas, estamos nós, com as nossas escolhas, que permitiremos a Deus contar os Seus.
Não pensemos que neste conflito epocal nos devamos apenas organizar com meios humanos. Não nos deixemos convencer de que o incrível poder do nosso Inimigo seja razão suficiente para permitir que sejamos derrotados e aniquilados.
Caros irmãos e irmãs: nós não estamos sozinhos! Precisamente porque esta é uma guerra contra a Majestade de Deus, Ele não se recusará a entrar em campo ao nosso lado, deixando-nos sozinhos para combater contra um Adversário que ousou desafiar ninguém menos que o Omnipotente, o Senhor dos exércitos em ordem de batalha, a cujo Nome tremem os fundamentos do universo. Pelo contrário: coloquemo-nos ao Seu lado, sob o glorioso estandarte da Cruz, certíssimos de uma vitória inimaginável e de uma recompensa que faz empalidecer todas as riquezas da terra. Porque o prémio que nos espera é imarcescível e eterno: a glória do Paraíso, a bem-aventurança eterna, a vida sem fim na presença da Santíssima Trindade. Um prémio que, na realização do fim para o qual fomos criados – dar glória a Deus –, recompõe a desordem do pecado original na economia da Redenção.
As armas que devemos afiar neste tempo, a fim de estarmos prontos para a batalha que se aproxima, são a vida na Graça de Deus, a frequência dos Sacramentos, a fidelidade ao imutável Depositum Fidei, a oração, especialmente o Santo Rosário, o exercício constante das Virtudes, a prática da penitência e do jejum, as Obras de Misericórdia corporais e espirituais, para conquistar para Deus os nossos irmãos distantes ou mornos.
Ouçamos a advertência do Apóstolo: «Por isso, tomai a armadura de Deus, para que tenhais a capacidade de resistir no dia mau e, depois de tudo terdes feito, de vos manterdes firmes. Mantende-vos, portanto, firmes, tendo cingido os vossos rins com a verdade, vestido a couraça da justiça e calçado os pés com a prontidão para anunciar o Evangelho da paz; acima de tudo, tomai o escudo da fé, com o qual tereis a capacidade de apagar todas as setas incendiadas do maligno. Recebei ainda o capacete da salvação e a espada do Espírito, isto é, a palavra de Deus» (Ef 6, 13-17).
Estas palavras, que São Paulo dirige aos fiéis da cidade de Éfeso, valem também e sobretudo para nós, neste tempo em que devemos compreender que «não é contra os seres humanos que temos de lutar, mas contra os Principados, as Autoridades, os Dominadores deste mundo de trevas, e contra os espíritos do mal que estão nos céus» (Ef 6, 12).
Este evento de Veneza foi desejado pelos seus organizadores como momento de reflexão e acto fundacional de um movimento de renascimento espiritual e social. Um chamamento espiritual às armas, por assim dizer, para nos contarmos e conhecermos. Mas, sobretudo, para dar um corajoso testemunho daquela Fé que, sozinha, é uma premissa necessária e indispensável para a paz e a prosperidade da nossa querida Pátria. Já o disse, digo-o agora e repito-o: pax Christi in Regno Christi.
Assim, como ao celebrar a vitória de Lepanto sobre os Turcos, o Senado veneziano prestou honras públicas à Virgem Rainha das Vitórias, a Quem reconheceu o mérito da derrota do inimigo da Cristandade; assim, hoje, devemos ter a coragem de redescobrir, no Evangelho de Cristo e na fidelidade aos Seus mandamentos, o elemento fundacional de toda a acção – pessoal e colectiva, social e eclesial – que deseje aspirar ao sucesso e ser abençoada por Deus.
As ruínas da sociedade anti-humana e anti-Cristo que assolou os últimos séculos da História, são um severo aviso para aqueles que se iludem a construir uma casa sem colocá-la sob a protecção do Senhor: «Nisi Dominus ædificaverit domum, em vanum laboraverunt qui ædificant eam. Nisi Dominus custodierit civitatem, frustra vigilat qui custodit eam» (Sl 126, 1). Esta casa, esta cidade, só pode renascer e ressurgir se reinam aquele Rei divino e aquela Rainha omnipotente pela graça, que foram os verdadeiros Soberanos da gloriosa República de Veneza, diante da qual o Doge e os Magistrados são representados de joelhos, devoto testemunho da ordem religiosa e social cristã. Seja esta vossa consciência o motor de todas as vossas e nossas futuras acções.
A todos vós, e a todos aqueles que sabereis reunir sob as insígnias de Cristo e da Virgem, de todo o coração concedo a minha paternal Bênção: in nomine + Patris, et + Filii, et Spiritus + Sancti. Amen.
† Carlo Maria Viganò, Arcebispo
Fonte: Dies Iræ
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