A chamada “cancel culture”, decorrente do activismo woke, que hoje se afirma sem pudor nas redes sociais, media e sociedade, é, bem espremidas as coisas, um fenómeno velho como o mundo. Uma versão remasterizada da intolerância comum em sociedades iliberais, nas quais a liberdade individual não é considerada um valor importante.
Por exemplo, nos países comunistas, para além da parafernália do Estado, também os vizinhos, a família, os filhos, os pais e os cônjuges, vigiavam a conformidade de cada individuo com a ortodoxia dominante e denunciavam os desvios, sendo o “apóstata” obrigado a fazer autocrítica, e sumariamente “cancelado”, por vezes no sentido literal da palavra.O que é novo neste fenómeno que grassa nas sociedades afluentes do Ocidente, é que se trata de uma hipócrita perversão das ideias liberais, porque é levada a cabo invocando enganadoramente certas ideias liberais como a justiça e a tolerância.
Segundo as teorias marxistas de Gramsci e seus derivados pós-modernos o sistema liberal, com a sua democracia representativa “burguesa”, assenta numa narrativa hegemónica opressora que perpetua coisas “más”, como “supremacia branca”, “imperialismo”, “patriarcado”, “heteronormatividade”, “cisnormatividade”,
Simplificando essa interpretação: a narrativa hegemónica é heterossexual, branca e cisgénero, e tudo o resto faz parte das “minorias oprimidas”. Todo este sistema opressor se intersecciona. Ou seja, categorias como género, raça, classe, orientação sexual, religião, estão ligadas entre si e concorrem num sistema de opressão que agrega racismo, sexismo, classismo, xenofobia, homofobia, transfobia, mudança climática e intolerâncias várias (interseccionalidade).
Nos últimos anos, estes conceitos têm estado no cerne do activismo social.
Não já na luta pela igualdade legal e de oportunidades, mas na demolição das fundações e consequências dos próprios valores e conceitos de bem e de mal, de certo e errado, de justo e injusto, passando pela ostensiva e despudorada proposta da desigualdade legal, no sentido de favorecer certas categorias “oprimidas”, como por exemplo, a decisão da Administração Biden de distribuir apoios federais a empresas em função da raça dos proprietários.
O activismo ataca pois, directamente, as atitudes, os valores, os comportamentos e as formas de pensar e de exprimir que constituem o ethos da nossa civilização e atribuindo-lhes qualificações morais simplistas e castradoras, exactamente como acontece na ficção distópica “1984”, de Orwell.
A ideia apresentada às pessoas, é a de que isto é “bom”, porque se destina a acabar com a “opressão”. E se o objectivo é “bom”,, então podem e devem usar-se todos os meios para mudar a forma como as pessoas se expressam, incluindo os mais autoritários se for necessáriio e conveniente.
Tal como prescrevia Maquiavel, os fins justificam os meios.
A ideia apresentada às pessoas, é a de que isto é “bom”, porque se destina a acabar com a “opressão”. E se o objectivo é “bom”,, então podem e devem usar-se todos os meios para mudar a forma como as pessoas se expressam, incluindo os mais autoritários se for necessáriio e conveniente.
Tal como prescrevia Maquiavel, os fins justificam os meios.
As directivas de linguagem e formações “para a diversidade”, que alastram em empresas, instituições, organizações e escolas de todos os níveis, estabelecendo a forma como se deve falar, escrever, comunicar, aplaudir, não são apenas repositórios de boas intenções paroquiais, como parecem a alguns, mas um portentoso e deliberado empreendimento orwelliano, que visa limitar e controlar a linguagem, atitudes, símbolos, imagens, conceitos, etc.
Ora isto choca de frente com o liberalismo.
Quem acredita que a liberdade de expressão é individual e axiomática, e que é a livre circulação de ideias que faz avançar o conhecimento, o progresso, o bem estar, etc, não compreende nem pode aceitar nada disto. Pode até achar que os doidos chegaram ao poder e que o mundo está de pernas para o ar.
Os loucos chegaram de facto ao poder, mas para os desalojar é preciso perceber o seu labirinto mental, que na verdade é bastante simples, diria até infantil.
As premissas essenciais do processo de enlouquecimento em curso são:
1ª- O racismo, sexismo, homofobia, transfobia, permeiam os sistemas democráticos ocidentais, pela maneira como as pessoas agem, pensam e se expressam. Por isso, têm poder e por terem poder, são opressivos para os “marginalizados” e bloqueiam o caminho dos valorosos “guerreiros da justiça social” que querem derrubar esse “sistema” injusto, assente na “supremacia branca” e no “heteropatriarcado”.
2ª- Este sistema prejudica e ofende os grupos marginalizados( todos os que não são brancos, homens e heterossexuais) o que é uma coisa “má” em termos de justiça e “equidade”. Equidade que parece um conceito sedutor, mas assenta na perigosa ideia de que todos têm o direito de obter os mesmos resultados independentemente do empenhamento e dotes individuais.
Para prosseguir aqueles valores supremos “bons”, essenciais para desbancar a “democracia burguesa”, e porque o clássico motor marxista da “luta de classes” não teve potência suficiente, torna-se pois moralmente imperativo criar, exacerbar e manipular, as contradições, usando a linguagem e todas as ferramentas necessárias para atacar a narrativa hegemónica da supremacia branca, patriarcado, cisnormatividade e outras. Nomeadamente não ter a mínima tolerância e “cancelar” quem expressa e perpetua essa narrativa, ou seja, quem tem um discurso “incorrecto”, ou pertence, por nascimento, ao grupo “opressor”.
Assim sendo, nada se ganha com os livres debates de ideias, porque o que se pretende não é comparar diferentes pontos de vista, mas sim obter um poder que permita impor a narrativa “certa”, desmantelando e marginalizando a narrativa “errada” opressora e má por definição.
Se alguém diz qualquer coisa que o activismo woke considere racista, sexista, transfóbico, ou até insuficientemente anti-racista, anti-sexista ou anti-transfóbico, há um backlash mediático, social e crescentemente legal, que leva a boicotes, despedimentos, ostracismo, insultos, punições, etc.
A pessoa alvejada é “má”, culpada de um dos “ismos” malditos, e merece ser punida de forma a que não possa ter mais qualquer relevância na esfera pública, onde possa influenciar o discurso dominante no sentido “errado”. E, obrigada a pedir desculpas públicas pela sua ignorância, agradecendo aos bullies que lhe fizeram ver a luz.
A punição (cancelamento) serve também para atemorizar outros.
O que se passou com J. K. Rowling, autora de Harry Potter, é paradigmático.
Um belo dia, Rowling tweettou que “se o sexo não é real, então não existe atracção homossexual”, que “a realidade vivida pelas mulheres, globalmente, é apagada”, e que “remover o conceito de sexo, remove a capacidade de muitos para discutirem sequer as suas vidas”, pois “dizer a verdade não é discurso de ódio”.
Quase de imediato, caiu-lhe toda a patrulha ideológica em cima.
Os activistas da “justiça social”, incluindo actores dos seus filmes, declararam que se tratava de um perigoso “discurso de ódio”, que negava a validade e a existência de transsexuais, criando, assim, um ambiente transfóbico e perpetuando o discurso opressor da “cisnormatividade”.
E, uma vez que a senhora era famosa, estava a expressar uma opinião violenta e tremendamente perigosa, merecedora de censura e punição.
Nenhum destes activistas quis sequer argumentar, apesar de a escritora ter publicado um longo ensaio sobre o tema, quando se viu alvo da fúria dos fanáticos. Desde então, os ativistas têm feito tudo para a desacreditar e ostracizar, de forma a eliminar da esfera pública a sua narrativa “opressora”. A Vanity Fair acusou-a mesmo de transfobia e desrespeito pelos direitos humanos. Para além dos insultos, ameaças, mistificações e mentiras, chegou-se ao extremo de se queimarem os seus livros em “autos de fé” públicos, que simbolizam o desejo de apagar as suas palavras para sanar os danos provocados pelo seu discurso “transfóbico” sobre sexo e género.
Os recentes protestos ligados ao movimento marxista Black Lives Matter (BLM) derrubaram (cancelaram) estátuas que, na opinião dos activistas, não só representavam uma narrativa racial opressiva, como a perpetuavam, apenas por estarem simplesmente ali.
E foi tudo a eito, desde Colombo a Churchill, um homem que encarnou a luta contra o nazismo, passando por David Hume.
Hume, um dos mais importantes filósofos europeus, foi então considerado, cerca de 250 anos depois da sua morte, como persona non grata pela direcção da universidade; e a torre com o seu nome, na universidade da sua terra, Edinburgo, foi rebaptizada, por se considerar que algo do que ele escreveu há dois séculos e meio, ofendia e oprimia hoje as pessoas detentoras do vantajoso estatuto de “vítimas do sistema”, que calhava olharem para a torre.
Para cúmulo desta campanha, a BBC tentou até cancelar o hino inglês. Só reverteu a decisão in extremis, após um intensa indignação nacional.
Como se pode facilmente comprovar, este activismo iliberal está hoje presente em tudo. Desde o catálogo do IKEA aos filmes americanos, passando pela figuras tristes que os futebolistas têm agora de fazer em público, de joelhos perante nem sabem o quê, em reverência penitente a grupos racistas, marxistas e oportunistas, como o BLM.
Trata-se, no fundo, da instanciação do impulso totalitário, tão presente nas profundezas mais primitivas da natureza humana, de usar a força para calar o pensamento não conforme. Mas é espantoso como estes activistas, até há pouco acantonados nos tugúrios mais fanaticamente imbecis da academia, conseguiram voltar a tomar o poder nas sociedades mais avançadas que a espécie humana construiu.
Não sei como vamos dar a volta a isto, tanto mais que o processo já está também em modo de rolo compressor em vários campos, com o silenciamento das vozes dissonantes relativamente à “verdade”, via insultos aos “negacionistas” e “vendidos”, punições, censura, e obstáculos nas carreiras, investigação e publicação.
Será isto a decadência?
José do Carmo
Ora isto choca de frente com o liberalismo.
Quem acredita que a liberdade de expressão é individual e axiomática, e que é a livre circulação de ideias que faz avançar o conhecimento, o progresso, o bem estar, etc, não compreende nem pode aceitar nada disto. Pode até achar que os doidos chegaram ao poder e que o mundo está de pernas para o ar.
Os loucos chegaram de facto ao poder, mas para os desalojar é preciso perceber o seu labirinto mental, que na verdade é bastante simples, diria até infantil.
As premissas essenciais do processo de enlouquecimento em curso são:
1ª- O racismo, sexismo, homofobia, transfobia, permeiam os sistemas democráticos ocidentais, pela maneira como as pessoas agem, pensam e se expressam. Por isso, têm poder e por terem poder, são opressivos para os “marginalizados” e bloqueiam o caminho dos valorosos “guerreiros da justiça social” que querem derrubar esse “sistema” injusto, assente na “supremacia branca” e no “heteropatriarcado”.
2ª- Este sistema prejudica e ofende os grupos marginalizados( todos os que não são brancos, homens e heterossexuais) o que é uma coisa “má” em termos de justiça e “equidade”. Equidade que parece um conceito sedutor, mas assenta na perigosa ideia de que todos têm o direito de obter os mesmos resultados independentemente do empenhamento e dotes individuais.
Para prosseguir aqueles valores supremos “bons”, essenciais para desbancar a “democracia burguesa”, e porque o clássico motor marxista da “luta de classes” não teve potência suficiente, torna-se pois moralmente imperativo criar, exacerbar e manipular, as contradições, usando a linguagem e todas as ferramentas necessárias para atacar a narrativa hegemónica da supremacia branca, patriarcado, cisnormatividade e outras. Nomeadamente não ter a mínima tolerância e “cancelar” quem expressa e perpetua essa narrativa, ou seja, quem tem um discurso “incorrecto”, ou pertence, por nascimento, ao grupo “opressor”.
Assim sendo, nada se ganha com os livres debates de ideias, porque o que se pretende não é comparar diferentes pontos de vista, mas sim obter um poder que permita impor a narrativa “certa”, desmantelando e marginalizando a narrativa “errada” opressora e má por definição.
Se alguém diz qualquer coisa que o activismo woke considere racista, sexista, transfóbico, ou até insuficientemente anti-racista, anti-sexista ou anti-transfóbico, há um backlash mediático, social e crescentemente legal, que leva a boicotes, despedimentos, ostracismo, insultos, punições, etc.
A pessoa alvejada é “má”, culpada de um dos “ismos” malditos, e merece ser punida de forma a que não possa ter mais qualquer relevância na esfera pública, onde possa influenciar o discurso dominante no sentido “errado”. E, obrigada a pedir desculpas públicas pela sua ignorância, agradecendo aos bullies que lhe fizeram ver a luz.
A punição (cancelamento) serve também para atemorizar outros.
O que se passou com J. K. Rowling, autora de Harry Potter, é paradigmático.
Um belo dia, Rowling tweettou que “se o sexo não é real, então não existe atracção homossexual”, que “a realidade vivida pelas mulheres, globalmente, é apagada”, e que “remover o conceito de sexo, remove a capacidade de muitos para discutirem sequer as suas vidas”, pois “dizer a verdade não é discurso de ódio”.
Quase de imediato, caiu-lhe toda a patrulha ideológica em cima.
Os activistas da “justiça social”, incluindo actores dos seus filmes, declararam que se tratava de um perigoso “discurso de ódio”, que negava a validade e a existência de transsexuais, criando, assim, um ambiente transfóbico e perpetuando o discurso opressor da “cisnormatividade”.
E, uma vez que a senhora era famosa, estava a expressar uma opinião violenta e tremendamente perigosa, merecedora de censura e punição.
Nenhum destes activistas quis sequer argumentar, apesar de a escritora ter publicado um longo ensaio sobre o tema, quando se viu alvo da fúria dos fanáticos. Desde então, os ativistas têm feito tudo para a desacreditar e ostracizar, de forma a eliminar da esfera pública a sua narrativa “opressora”. A Vanity Fair acusou-a mesmo de transfobia e desrespeito pelos direitos humanos. Para além dos insultos, ameaças, mistificações e mentiras, chegou-se ao extremo de se queimarem os seus livros em “autos de fé” públicos, que simbolizam o desejo de apagar as suas palavras para sanar os danos provocados pelo seu discurso “transfóbico” sobre sexo e género.
Os recentes protestos ligados ao movimento marxista Black Lives Matter (BLM) derrubaram (cancelaram) estátuas que, na opinião dos activistas, não só representavam uma narrativa racial opressiva, como a perpetuavam, apenas por estarem simplesmente ali.
E foi tudo a eito, desde Colombo a Churchill, um homem que encarnou a luta contra o nazismo, passando por David Hume.
Hume, um dos mais importantes filósofos europeus, foi então considerado, cerca de 250 anos depois da sua morte, como persona non grata pela direcção da universidade; e a torre com o seu nome, na universidade da sua terra, Edinburgo, foi rebaptizada, por se considerar que algo do que ele escreveu há dois séculos e meio, ofendia e oprimia hoje as pessoas detentoras do vantajoso estatuto de “vítimas do sistema”, que calhava olharem para a torre.
Para cúmulo desta campanha, a BBC tentou até cancelar o hino inglês. Só reverteu a decisão in extremis, após um intensa indignação nacional.
Como se pode facilmente comprovar, este activismo iliberal está hoje presente em tudo. Desde o catálogo do IKEA aos filmes americanos, passando pela figuras tristes que os futebolistas têm agora de fazer em público, de joelhos perante nem sabem o quê, em reverência penitente a grupos racistas, marxistas e oportunistas, como o BLM.
Trata-se, no fundo, da instanciação do impulso totalitário, tão presente nas profundezas mais primitivas da natureza humana, de usar a força para calar o pensamento não conforme. Mas é espantoso como estes activistas, até há pouco acantonados nos tugúrios mais fanaticamente imbecis da academia, conseguiram voltar a tomar o poder nas sociedades mais avançadas que a espécie humana construiu.
Não sei como vamos dar a volta a isto, tanto mais que o processo já está também em modo de rolo compressor em vários campos, com o silenciamento das vozes dissonantes relativamente à “verdade”, via insultos aos “negacionistas” e “vendidos”, punições, censura, e obstáculos nas carreiras, investigação e publicação.
Será isto a decadência?
José do Carmo
Fonte: Inconveniente
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