domingo, 6 de fevereiro de 2022

Portugal, eu te ordeno, levanta-te!

Homilia proferida na Missa de sufrágio de el-Rei D. Carlos e do Príncipe Dom Luis Filipe pelo Rev.º Padre Goncalo Portocarrero de Almada


(Igreja de São Vicente de Fora, 1-2-2022)


1. Introdução. “Naquele tempo, depois de Jesus ter atravessado de barco para a outra margem do lago, reuniu-se uma grande multidão à sua volta, e Ele deteve-se à beira-mar” (Mc 5, 21). Assim se dizia no Evangelho, segundo São Marcos, que corresponde a esta terça-feira da quarta semana do tempo comum. Também nós, nesta monumental Igreja de São Vicente de Fora, somos parte dessa grandiosa multidão que se reúne à volta do Senhor Jesus, desejosa de ouvir a sua palavra e de receber a graça da vida, concedida à filha de Jairo, e da cura obtida pela mulher “que tinha um fluxo de sangue havia doze anos” (Mc 5, 25) e que ficou sã ao tocar nas vestes do Mestre.

Hoje ocorre mais um aniversário do atentado que vitimou, no Terreiro do Paço, Sua Majestade Fidelíssima el-Rei D. Carlos I, bem como Sua Alteza Real o Príncipe D. Luís Filipe. Esta Eucaristia celebra-se em sufrágio das suas almas, sem esquecer el-Rei D. Manuel II; sua mãe, a Rainha D. Amélia; sua avó, a Rainha D. Maria Pia e os restantes monarcas portugueses, a quem se devem tantas glórias de Portugal. Por este motivo, depois desta celebração, terá lugar uma piedosa homenagem no anexo Panteão da Casa Real, onde jazem as vítimas do regicídio.

Este ano é também o do centenário do nascimento, para a vida eterna, do Beato Carlos, que foi no século Imperador de Áustria e Rei Apostólico da Hungria, neto materno da Infanta D. Maria Ana de Bragança, filha da Rainha D. Maria II. Também pelo seu casamento, o Beato Carlos está aparentado com a nossa Família Real, porque a Imperatriz Zita de Bourbon-Parma era neta materna de el-Rei D. Miguel I, bisavô, pela varonia, do actual Chefe da Casa Real portuguesa.

Esta Eucaristia tem um sentido especial porque, no ano passado, por imperativos sanitários de todos bem conhecidos, não foi possível a sua realização. Assim sendo, aproveitemos esta ocasião para também sufragar os que, entretanto, o Senhor chamou à sua presença, e para agradecer a Deus o dom da vida, no renovado propósito de gastar a nossa existência no serviço de Deus e de Portugal.

Elevemos também, em acção de graças, a nossa oração ao Senhor, pela saúde de Suas Altezas Reais os Duques de Bragança. Que o Senhor abençoe também o Príncipe da Beira e os Infantes para que, qual nova ínclita geração, sejam agora, como o Infante Santo, exemplos de devoção e, como o Infante Dom Henrique, pioneiros de novas gestas heroicas, em nome da fé e da nação.

Cumpre-me também saudar, como é da praxe, os membros das Ordens pontifícias aqui presentes: a Soberana e Militar Ordem hospitalária de São João, também dita de Malta, e a Ordem de Cavalaria do Santo Sepulcro de Jerusalém, aqui representadas por Cavaleiros e Damas a quem dirijo uma confraternal saudação. Cumprimento também os membros das Ordens dinásticas de Santa Isabel e de Nossa Senhora da Conceição, que teve recentemente a bondade de me receber, como simples pajem da nossa Padroeira e Rainha.

Não posso deixar de referir a Real Associação de Lisboa, cujo Presidente, meu bom amigo, teve, mais uma vez, a amabilidade de me convidar para presidir a esta celebração, bem como a Causa Real, a cuja Presidente me une também uma já antiga amizade. Saúdo todos os demais participantes nesta sagrada liturgia, fazendo minhas as suas intenções, na esperança de que também as minhas petições estejam presentes nas suas orações.

 

2. O luto do Rei David. Não é sem emoção que se lê o episódio bíblico que narra a morte de Absalão (2 Sam 18, 9-10.14b.24-25a.30 – 19, 3). Apesar de filho do Rei David, tinha pegado em armas contra o seu augusto progenitor, mas a derrota do seu exército foi também a sua ruína. Segundo o relato agora proclamado, a sua “cabeleira prendeu-se nos ramos e ele ficou suspenso entre o céu e a terra, enquanto o macho que ele montava seguiu para diante” (2Sam 18, 9). Estando nesta difícil situação, que seria cómica se não fosse trágica, Joab “tomou três dados e cravou-os no peito de Absalão”, matando-o (cf 2Sam 18, 14).

O óbito do príncipe rebelde parecia ser uma boa notícia para David, que ficava assim confirmado como rei e via definitivamente frustrada a sediciosa tentativa de usurpação do seu trono. Contudo, o falecimento de Absalão não foi motivo de alegria para o soberano, mas ocasião de amargo luto: “O rei ficou perturbado. Subiu ao aposento que ficava por cima da porta e começou a chorar, dizendo: ‘Meu filho Absalão! Meu filho! Meu filho Absalão! Quem me dera ter morrido em teu lugar! Meu filho Absalão! Meu filho!’” (2Sam 19, 1).

Um político talvez se alegre pela derrota do seu principal adversário, como um general festeja a vitória sobre o seu maior inimigo, mas nenhum pai, digno deste nome, se pode felicitar pela morte de um filho, mesmo que rebelde. A lamentação de David é exemplificativa do amor de Deus por nós, seus filhos pecadores. Apesar das nossas infidelidades, Deus continua a amar-nos apaixonadamente, tão apaixonadamente que “enviou o seu Filho ao mundo”, não “para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele” (Jo 3, 17).

A Paixão de Cristo é a mais eloquente expressão do amor apaixonado de Deus pelo homem, criado à sua imagem e semelhança. Apesar dos nossos pecados, Deus ama-nos no seu Filho e, como David chorou a morte de Absalão, sofre a morte, pelo pecado grave, que por isso se chama mortal, da nossa alma. O homem pode usar a sua liberdade para o bem e para o mal, mas não pode cancelar o amor de Deus que, na sua infinita misericórdia, continuamente nos chama à conversão, para que vivamos na “liberdade gloriosa dos filhos de Deus” (Rm 8, 21).

A lamentação de David foi prenúncio da dor que feriu os corações das Rainhas D. Maria Pia e D. Amélia, pela morte dos seus filhos, el-Rei D. Carlos I e D. Luís Filipe, respectivamente. Para outros, foi apenas o Chefe de Estado e o seu legítimo sucessor, mas, para aquelas duas mães, foram os seus filhos que tombaram sob as balas assassinas dos regicidas. As lágrimas das duas Rainha, unidas no mesmo luto, são também as lágrimas de Portugal, que perdeu, no monarca, um exemplar governante e diplomata e, no Príncipe Real, um leal servidor do Rei e da Pátria. Não há ideologia política, nem propósito revolucionário, que legitime um tal crime de lesa-majestade, que precipitou o fim do regime ao qual Portugal deve a sua existência e as maiores glórias da sua História.

 

3. A cura da mulher. O relato evangélico refere uma pobre mulher, “que tinha um fluxo de sangue havia doze anos, que sofrera muito nas mãos de vários médicos e gastara todos os seus bens, sem ter obtido qualquer resultado, antes piorava cada vez mais” (Mc 5, 25-26). À humilhação da doença somava-se agora a da indigência, a que se vira condenada depois de gastar tudo o que tinha com os médicos que, já na altura, pelos vistos, cobravam bem as consultas e tratamentos. Acrescia ainda a indignidade religiosa: a sua doença fazia-a impura, segundo as leis judaicas, e, por isso, não se podia aproximar de ninguém: quem a tocasse ficava automaticamente obrigado à purificação legal. Por este motivo, aproxima-se de Jesus num momento de grande confusão, para sorrateiramente tocar nas suas vestes e assim, como firmemente cria, ficar curada. Foi o que fez e a sua fé não foi defraudada, porque “no mesmo instante estancou o fluxo de sangue e sentiu no seu corpo que estava curada da doença” (Mc 5, 29).

Esta boa mulher, que parecia exercer a sofisticada arte dos carteiristas, inaugurou uma prática muito conhecida, a que os fluentes em língua inglesa chamam “hit and run”, e que se pode traduzir por toque e fuga. É habitual em automobilistas sem escrúpulos que, depois de causarem uma mossa numa viatura estacionada, fogem sem assumir a responsabilidade do dano provocado. Às vezes, esta técnica imoral resulta, mas não foi o caso da mulher, “porque Jesus notou logo que saíra uma força de Si mesmo” (Mc 5, 30). Nosso Senhor não queria repreender quem O tinha tocado, mas elogiar a sua fé, pois fora essa a razão da sua milagrosa cura.

 

4. A ressurreição da filha de Jairo. Tem este relato evangélico uma particularidade: refere um milagre dentro de outro milagre. Com efeito, é quando Jesus se dirige para a casa de Jairo, cuja filha ressuscitará, que cura a mulher do fluxo de sangue.

Nesta situação, é muito de admirar a serenidade de Jairo. Não obstante a imperiosa necessidade de que o Senhor fosse, quanto antes, a sua casa, para salvar a filha, que estava a morrer, não se zanga com a mulher que atrasa o Mestre. Outra pessoa, naquela circunstância tão aflitiva, ter-lhe-ia exigido que não se intrometesse num caso da máxima urgência, que era de vida ou morte. Jairo poderia ter-lhe dito: Se quer pedir uma graça a Jesus, aguarde a sua vez! E agora desapareça daqui, que este não é o seu milagre!

Que bonita lição nos dá Jairo, cuja aflição o não levou a ser egoísta, nem a importunar a intrometida doente. A bem dizer, também se poderia ter exasperado com o inquérito que Jesus quis fazer depois da cura da mulher e que, decerto, podia esperar por melhor momento. Mas, mais uma vez, não se deixou vencer pela impaciência. Que grande sabedoria a de quem sabe esperar, não porque desiste dos seus ideais, mas porque sabe que os tempos de Deus não são os nossos.

A inesperada intervenção da mulher do fluxo de sangue teve uma consequência fatal: antes de Jesus chegar à casa de Jairo, a filha deste morreu. Quando transmitiram ao desolado pai a triste notícia, acrescentaram que de nada servia chamar o Mestre. Mas “Jesus […] disse ao chefe da sinagoga: ‘Não temas; basta que tenhas fé” (Mc 5, 36).

Também esta segunda cura é um milagre da fé. Não obstante a comprovada morte da rapariga, que já todos choravam, Jesus “pegou-lhe na mão e disse: ‘Talitha Kum’, que significa: ‘Menina, Eu te ordeno: levanta-te’. Ela ergueu-se imediatamente e começou a andar, pois já tinha doze anos” (Mc 5, 41-42).

Doze anos era igualmente o tempo em que a mulher curada tinha sofrido por causa de “um fluxo de sangue” (Mc 5, 25) e, por isso, também neste pormenor estes dois milagres coincidem. Talvez não seja excessivamente atrevido dizer do Portugal contemporâneo o que o evangelista disse da mulher miraculada, pois também da nossa nação se pode hoje afirmar que gastou “todos os seus bens, sem ter obtido qualquer resultado, antes piorava cada vez mais” (Mc 5, 26).

 

5. Conclusão. Não me compete, muito menos no âmbito de uma homilia, fazer qualquer pronunciamento político, mas permitam-me uma confidência. Quando alguns analistas dão por morta e enterrada a Monarquia portuguesa, não posso deixar de me lembrar dos que anunciaram, a Jairo, o falecimento da filha. Se alguém sugere que a Instituição Real não está morta, mas apenas adormecida, também ouve o riso trocista dos que, há dois mil anos, fizeram pouco de Jesus, por ter dito que “a menina não morreu; está a dormir” (Mc 5, 39). Esse escárnio é o eco presente dos que, por falta de fé, não seguiram o Santo Condestável; dos velhos do Restelo que, por tibieza, na era dos Descobrimentos, não se fizeram ao mar; e dos que, por cobardia, não se uniram aos que, em 1640, restauraram a nossa independência. Homens temerosos sempre os houve e haverá, mas atormenta-me a dúvida de que não haja, no meu país, quem tenha a fé que faz os milagres, nem a ousadia dos nossos heróis de antanho. Haja, pois, quem pegue na mão esvaída da Pátria e brade:

Portugal, eu te ordeno, levanta-te!

Depois da ressurreição da filha de Jairo, “ficaram todos muito maravilhados. Jesus recomendou-lhes insistentemente que ninguém soubesse do caso e mandou dar de comer à menina” (Mc 5, 42-43). Que a maravilha da nossa fé cristã alimente sempre o nosso propósito de bem servir o nosso país, na senda de el-Rei D. Carlos I e do Príncipe Real, mártires da Pátria. Que ao seu sacrifício corresponda agora a graça da ressurreição nacional. Que Nossa Senhora da Conceição, nossa Padroeira e Rainha, nos obtenha o milagre de ver ressurgir, hoje de novo, o esplendor de Portugal.

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