Conversas com o Duque de Bragança
Prefácio
Conheci o Duque de Bragança no princípio dos anos 80, em circunstâncias ligadas, evidentemente, ao exercício da minha profissão. Estava preparada para defrontar uma espécie de exemplar de museu, uma personagem com uma aura de nostalgia pelos "bons velhos tempos ", um discurso desactualizado, e provavelmente amargo. Mas quem me apareceu pela frente foi um homem desempoeira-do, com um sorriso expontâneo e um grande sentido de humor, que é, como todos sabem, um dos mais seguros indicadores de inteligência. Fiquei com vontade de o conhecer melhor, e tempos depois pedi-lhe uma entrevista. De partida para o norte, para a sua quinta em Santar, D. Duarte sugeriu-me que o acompanhasse a Arouca, onde uma estátua da Rainha Santa Mafalda, "minha tia-avó" (dele), ia ser descerrada. Fazia calor, e durante a cerimónia, precedida de uma missa, aconteceram as mais diversas e hilariantes peripécias. Mas foi a primeira vez que ouvi chamar "Rei" ao Duque de Bragança, pelas pessoas da rua, que, nesse dia de festa, passeavam em ar de romaria. Confesso que estava mais preocupada, na altura, em saber se Sua Alteza ainda conservava a coroa e o ceptro, para lhe pedir que se deixasse fotografar assim, do que em desenterrar ultrapassadas teorias monárquicas. Foi a curiosidade, mais uma vez, que me levou a tentar perceber o seu discurso, que era sempre de um desarmante bom senso e de uma grande lucidez.
A caminho de Santar perguntei-lhe se havia algum sentido no regresso da monarquia; uma pergunta, reconheço, quase provocatória. Mas também foi essa, sei hoje, a primeira pedra na construção deste livro. Durante anos, em visitas curtas, ou mais demoradas, fui tomando apontamentos, gravando as nossas conversas. Sentia, em relação a tudo o que ele simbolizava — e simboliza —, a mesma mistura de sentimentos que sinto, passe o aparente absurdo da comparação, perante a Tourada: respeito e não entendo. Mas os sentimentos, que não passam pelo crivo da razão, intuíam, em ambos os casos, a força antiga do arquétipo.
Em Santar, a diferença entre o calor da sala aquecida pelo fogo de uma generosa salamandra e o quarto gelado onde um pequeno aquecedor eléctrico não afastava o frio que se introduzia dentro dos lençóis de linho, impediam-me de adormecer de imediato. Mas não era só isso. Como também não eram as lendas do fantasma que morava na capela mesmo ao lado do quarto de hóspedes, que me roubavam o sono. Acordada depois de horas de conversa, revia os meus velhos conceitos, revivia a História. Aos poucos ia tomando consciência de como naquele homem, o passado, pela voz misteriosa do sangue, estava presente num discurso absolutamente coerente. Um passado que me comovia e acordava o amor quase esquecido por aquela entidade a que de uma forma hoje quase banal chamamos Pátria.
Tudo o que D.Duarte me dizia fazia sentido. As vezes ficava irritada. Tomava apontamentos de forma anárquica, e meses mais tarde voltava à carga. É desconfortável desarrumar ideias que tomamos por valores absolutos.
No ano passado, almocei com D.Duarte Pio na sua casa de Sintra. Pedi-lhe autorização para escrever a sua biografia. A princípio resolvi meter tudo no mesmo "bolo": as nossas conversas sobre a monarquia e a sua vida. Tudo. Depois percebi que fazia mais sentido começar por tornar públicas as reflexões do Duque de Bragança sobre a doutrina monárquica. Há mais de 60 anos que esse pensamento não era actualizado. Do modo que todo o mérito deste livro, se assim o reconhecerem os leitores, pertence a D.Duarte. Para mim estas conversas, a que contraponho as perguntas vulgares que qualquer pessoa colocaria, foram uma lição. De História e de humildade. Oxalá ajude, a quem o ler, como me ajudou a mim. Conhecermo-nos a nós próprios, o desafio grego lançado há milhares de anos em Delfos, passa também por conhecermos de onde viemos. E esse é o papel da História.
Lisboa, Fevereiro de 1995
MANUELA GONZAGA
Fonte: Monarquia Portuguesa
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