Genoveva Mayer Ulrich, que usou o pseudónimo literário e mundano de Veva de Lima, mãe da educadora Maria Ulrich, presenciou em Dezembro de 1918 os festejos parisienses do fim da primeira guerra mundial. Do seu relato, publicado meses depois, num jornal de Lisboa, que permanece esquecido, reproduz-se um excerto que diz tudo sobre a emoção da autora ao avistar a mais linda bandeira nessa festa «quadro de epopeia».
Paris! — mirífico espectáculo! Nunca essa linda jóia citadina revestiu, nestas horas rápidas, mais fulgor na sua face explendente para esconder no mais profundo dos seus antros a miséria e a ruína que a devoram.
Onze nações consteladas de fardas imortais espalham os seus exércitos em farândola gentil, como um espargir de flores que se desprendem pelo coração da França, pelas ruas de Paris. E nesse burburinho fantástico de idiomas infinitos, os mil fardamentos de todas as terras enxameiam com a sua mancha de sugestões épicas na multidão monstruosa que a rodeia. Paris, por momentos, parece estalar no apertão titânico do seu movimento, comparável a um areal monstro que se fosse engolfar na concha delicada de um rochedo.
[…]
Um dia após o clamor das fanfarras guerreiras ter anunciado ao mundo o fim das batalhas e as redentoras promessas da Paz, os chefes dos países vitoriosos quiseram prestar à França a justa homenagem pela sua primazia de glória. Anunciaram-se os cortejos; as ruas do percurso encheram-se de cada lado de filas compactas de assistentes. Na Avenida dos Campos Elíseos as fachadas dos palácios crivaram as suas janelas, os seus varandins, até aos beirões dos telhados, de vultos femininos. Improvisaram-se estrados à beira dos passeios; pelos troncos das árvores, como cachos de pardais, a garotada jocosa da rua suspendeu os seus balcões e ao longo de todas as grandes ruas do trajecto fizeram guarda de honra as tropas vindas do front com as suas fardas ainda ruças e chamuscadas de metralha.
Havia silêncio e solenidade na expectativa e as baionetas, floridas pelas mulheres, punham a nota de ternura gentil naquele quadro de epopeia.
Tarde turva de bruma que o azul grisalho dos uniformes anilava dum impalpável véu e numa extensão incomensurável.
As bandeiras de todos os países aliados flutuavam em milhares de panóplias polícromas nas paredes de alto a baixo e num só ritmo brando. Um grande silêncio suspendia o grande ímpeto de ovação que a rua ia clamar, e esse silêncio electrizado era como o fuzil de onde sairia a faísca para agitar, na mesma vibração, alguns milhões de seres.
Enfim, um troar estrepitante duma salva longínqua anunciou à cidade o cortejo em marcha.
[…]
E o cortejo passou…
Entontecida pelo turbilhão das massas que se dispersavam em redemoinhos doidos, sentia uma intraduzível e inexplicável tristeza. Milhares e milhares de bandeiras revestiam por completo as fachadas das casas. Em vão procurei uma bandeira de cores feias, que no entanto devia ter o seu lugar entre tantas que se cruzavam. Bandeira de cores feias? Que importam as cores? É a bandeira portuguesa, que nos campos da Flandres serviu de manto a muitos corpos de heróis. Estrangulada por uma das que me vexava murmurei: — França ingrata! Sempre o forte!… Mas como que sonhando, aos meus olhos que se perturbavam de repente, desenrolada em todo o seu pano, suspensa nas janelas dum grande edifício bancário uma grande bandeira linda. Sim! Era bem aquela: azul e branca! Ao centro o escudo vermelho, as quinas, a coroa real, e a evocação e aglória também daquelas cores e daquele escudo, e toda a epopeia igual à que ali também se erguia: os mares, a civilização por Ela levada a novos continentes, as terras de África arrancadas palmo a palmo e em que ainda há pouco flutuava. Sim, com lágrimas senti Portugal naquelas cores, senti enfim uma coisa doce e triste que se chama a saudade e que daquelas cores me vinha lembrando as nossas margens de brancas espumas e o nosso céu de límpido azul. E impelida pela turba ruidosa, afogada em nostalgia, vagabundei sem rumo com o sentimento melancólico de soledade que se tem entre as multidões. Mas as fortes evocações fazem milagres… Na vozearia ensurdecedora da turba, umas vozes sonoras em coro cantavam. Virei-me. Cinco soldados portugueses, enlaçados como em dança campestre, cantarolavam uma canção portuguesa: Saricoté… olé… olé… ó… Saricoté.
[…]
Fonte: Real Associação de Lisboa
Sem comentários:
Enviar um comentário