Manifesto de um imaginário esquerdista ululante, presidente de um não menos
imaginário Banco Alimentar a Favor da Fome:
"Sou a favor
da demissão da presidente do Banco Alimentar Contra a Fome pelas seguintes
razões:
1.º - Por causa do nome. Isabel é nome de rainha e, pior
ainda, de santa: duas inconveniências numa só palavra! À frente de uma
instituição social exige-se um nome laico e republicano. Em política, o que
parece é. Ainda por cima, a santa homónima fez o milagre errado: o que se quer é
que as flores se convertam em pães, e não estes em rosas!
Se o
nome próprio não ajuda, o apelido muito menos: Jonet! Soa francês e é parecido
com Junot, de tão má memória. Além disso, é queque, e os pobres precisam de pão
e não de bolos. Uma estrangeirada não pode comandar uma legião de voluntários
que, periodicamente, nos assalta à entrada dos supermercados. Os pobres querem
francesinhas e não afrancesadas!
2.º - Porque é presidente de um
banco, ou seja, é banqueira! Portanto, faz parte da oligarquia que explora os
pobres. Os bancos só ajudam quem não precisa e nunca serviram sopas aos pobres.
Banqueira foi só uma, a do povo e mais nenhuma! E - note-se! - a D. Branca
acabou na prisão! Nada de banco, a não ser o dos réus. O Banco Alimentar tem de
passar a ser um sindicato e dar bifes, todos os dias, ao povo. Abaixo o Banco
Alimentar e viva o Bitoque de Esquerda! Porque, afinal, se a banca é da direita,
é da esquerda o monopólio do social.
3.º - Porque fez umas
declarações incríveis: foi à televisão dizer coisas sensatas e, pior ainda,
verdadeiras! E se o Governo dissesse toda a verdade sobre a crise, a oposição
não prometesse o que sabe que não poderá dar e as centrais sindicais não
aldrabassem sobre as greves?! Com verdades e bom senso não se vai a lado nenhum!
Além disso, como muito bem explicou Orwell, a liberdade de pensamento e de
expressão não servem para isso, nem são para todos!
4.º - Porque
é contra a fome. Mas um banqueiro não pode ser contra o dinheiro, nem a
presidente do Banco Alimentar contra a fome! Até porque a fome é necessária: as
revoluções fazem-se em jejum. Com a barriga farta, não há quem proteste! Os
obesos não apedrejam polícias! As sopinhas do Banco Alimentar querem dar cabo da
raiva proletária, em nome da resignação cristã, mas, com conformismo, fica
entornado o caldo revolucionário. É preciso ler Marx - não o Groucho! - e
aprender que o que faz falta é exasperar a malta, para que seja carne de canhão
para a revolução.
5.º - Porque é católica, o que é um insulto para
a laicidade das instituições sociais. Há muito que os pobres foram
nacionalizados, antes até dos bancos. Por sinal, capitães de Abril, por que raio
é que o Alimentar ainda o não foi?! Já não há pobrezinhos paroquiais: agora são
todos do Estado, são todos do povo, são nossos. Se a Igreja quer ter os seus
próprios pobres, para promover bazares e canastas de senhoras bem, que os
arranje à sua custa, mas os pobres nacionais não são de nenhuma religião, porque
estão ao serviço das ambições políticas da esquerda! É que, se nos tiram os
pobres, que nos resta?! Se já nem valores ou ideologia temos
...
6.º - Porque faz caridade. Para que, depois de um lauto
banquete, já não lhe doa a consciência por ter comido à tripa forra, em uma
hora, o que dava para alimentar, durante um mês, cem crianças. Mas esta caridade
é a mordaça da hipocrisia que sufoca, na garganta do pobre, o grito da justiça.
Quem quiser solidariedade social que deixe de brincar à caridadezinha e pugne
pelos direitos dos proletários. É verdade que o marxismo não trouxe a justiça
social, nem encheu as barrigas dos explorados, mas encheu de arrogância moral
uma certa esquerda que fez da pobreza, que não conhece senão como abstracção, a
sua bandeira e a sua razão.
Concluindo e resumindo: que se demita
a presidente do Banco Alimentar! Bem sei que, se o fizer, as dezenas de seus
colaboradores, as centenas de voluntários, os milhares de dadores e as dezenas
de milhares de pobres a quem ajuda, discreta e eficazmente, através de tantas
instituições maioritariamente cristãs, ficarão a perder. Mas seria uma atitude
muito politicamente correcta, que ganharia o aplauso de meia dúzia de sujeitos
bem-pensantes, que nunca fizeram nada por quem tem fome.
Já agora
... alimente esta ideia!"
P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Fonte: Povo