domingo, 18 de novembro de 2012

Género e mentira

Só a imensa crosta de ignorância pode desculpar atrevimentos e mentiras que, de tão propaladas e repetidas, servidas para apascentar mitos e agendas ideológicas contemporâneas, teimam em ferir de morte a verdade histórica. Sim, porque aqui nesta casa, longe de efabulações e filosofices, somos estritamente adeptos de história descritiva, fundada em factos, acontecimentos, gente de carne e osso e documentos. Aqui não há Kants nem Hegéis nem Marxs: há factos. Ora, na imensa galeria de mentiras, mentirinhas e mentironas que se espalham como fogo no restolho cultural da sociedade portuguesa avulta, desonesto, impenitente e desavergonhado, o mito da inferioridade da mulher na sociedade portuguesa antiga. Há dias, foi em boa hora nomeada uma senhora para relevante cargo na diplomacia portuguesa. Muito bem. As mulheres portuguesas são, na sua generalidade, muitíssimo mais esforçadas, capazes e empreendedoras que as suas caras-metades masculinas. Porém, no foguetório de panegíricos e ditirambos que então se produziu na imprensa, não havia quem não afirmasse mais esta conquista.

 
Descartando com gosto a breve, pelicular mas teimosa cinta de convenções burguesas, que não ultrapassam os 100 anos e escondem a frondosa floresta da história nacional, a verdade é que as mulheres foram, nesta terra, do nascimento da nacionalidade até meados do século XIX, um poderoso pilar da sociedade portuguesa. Estiveram ou foram decisivas em momentos axiais da nossa vida colectiva, dominaram o poder político, tiveram lugar cimeiro na vida cultural e tiveram, até, parte activa nas mais relevantes decisões. O mito mais glosado - uma mentirona - afirma que as mulheres estavam apartadas da actividade cultural no Portugal Antigo. Então, porque razão em todas as cidades portuguesas havia sempre, sem excepção, uma "Rua das Mestras" ? Mestras, sim , professoras. Então, ninguém se lembra de Públia Hortênsia de Castro, prodígio da Universidade de Coimbra, um dos vultos que maior sulco deixou no Renascimento português ? Então ninguém se dá conta, nos índices de nomes e profissões dos livros de portarias da Torre do Tombo que por ali há centos de mulheres que se dedicavam ao ensino ? Ninguém se lembra do rol interminável apresentado por Frei Luís dos Anjos no seu Jardim de Portugal em que se da noticia de alguas sanctas & outras molheres illustres em virtude (...), ou dessa imensa figura que foi Bernarda Ferreira de Lacerda, expoente da Restauração, latinista, poetisa, panfletária influentíssima ? E, porque não, lembrar também D. Leonor de Almeida Portugal (Alcipe) e a sua Sociedade da Rosa, um verdadeiro cripto-partido no Portugal pré-revolucionário do fim do Antigo Regime.
Se os entusiastas da mentira pedem mais, ora, atirem-lhes à cara as heroínas de Diu (Isabel Madeira, Isabel Fernandes, Catarina Lopes e Isabel Dias), mulheres soldados do batalhão feminino que empurraram muralha fora os atacantes, batendo-os em terreno descampado ? Ou ainda, porque não, de Antónia Rodrigues, agraciada e condecorada por D. Filipe II por feitos de armas realizados em Mazagão.

Compreenderá então o(a) caro(a) leitor(a) esse reles ódio machista e burguesito que o século XIX votou a Dona Carlota Joaquina, chefe de partido, mulher de armas, de sim e não que, enquanto viva, impediu o que se seguiu: uma guerra civil que destruiu para sempre o país.É fácil fazer filosofice. Mais difícil é queimar as pestanas. Ora, tratem de estudar.
 
 
Miguel Castelo-Branco
 
Fonte: Combustões

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