quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Merkel em Portugal

 
Vestindo um uniforme português, Guilherme II com D. Carlos e D. Amélia (Lisboa, Março de 1905)
 
 
Poderá a muitos parecer paradoxal, mas a Alemanha que esta manhã (12 de Novembro) se apresenta em Portugal, é no todo continental, uma potência europeia bastante mais poderosa que aquela outra que há pouco mais de cem anos chegou em festiva visita a Lisboa. Quando o Kaiser Guilherme II desembarcou no Cais das Colunas, esperava-o o seu primo D. Carlos I, soberano de um país com quem as possessões africanas alemãs delimitavam fronteiras comuns em África. Lisboa engalanou-se a rigor e saiu à rua, apinhando-se a multidão para ver passar D. Carlos e o seu poderoso convidado. Nem o povo agrediu verbalmente aquele que aparentemente ameaçava a integridade do império ultramarino português, nem os dois monarcas temeram desfilar entre muitos milhares de portugueses.
 
 
Vivia-se há muito um período de paz continental numa Europa onde Portugal podia contar com a interessada protecção britânica, potência ciosa da segurança das rotas marítimas e consciente da vital posição geográfica portuguesa. Já naquele alvorecer da Entente Cordiale à qual D. Carlos I ofereceu os seus bons ofícios em Paris e Londres, o nosso país enfrentava as cíclicas crises financeiras, surgindo como um peão no gizar das alianças que uma década depois se digladiariam nos campos de batalha da Flandres, Balcãs e leste europeu. Portugal valia pela sua posição estratégica e sobretudo pelo seu precioso património ultramarino, a isto acrescentando-se a teia de laços familiares que uniam a Casa de Bragança às dinastias reinantes na Alemanha, Grã-Bretanha, Bélgica, Itália, Áustria-Hungria, Espanha e Roménia. Estilhaçado o sistema bismarckiano de segurança, no conjunto europeu o Kaiser encontrava escolhos difíceis contornar, enfrentando o pesadelo da aliança franco-russa e a declarada hostilidade inglesa pelo frenético programa naval desenvolvido por Berlim. Pior ainda, os aliados da Alemanha eram de duvidosa solidez, dados os evidentes problemas internos do Império Austro-Húngaro, a óbvia decadência do Homem Doente da Europa - o Império Otomano - e a tradicional volatilidade da política externa da Itália.
 
 
A Alemanha, de facto o chamado motor europeu, é agora industrialmente tão poderosa como aquela que o Kaiser governava e ao invés dos tempos do II Reich, pode contar com a resignada aquiescência de uma França em acentuado declínio e de uma Grã-Bretanha rotineiramente avessa aos assuntos continentais. O mundo não é o mesmo, já não existem impérios coloniais e a queda do Muro de Berlim precipitou os acontecimentos. Com muito dinheiro e produtos de exportação, a Alemanha do nosso tempo, sem um exército outrora por todos temido, voltou a encontrar a sua parcial unidade e tornou-se no principal actor da chamada União Europeia, ditando por direito e mérito próprio, as políticas que para o bem e para o mal o bloco europeu segue sem alternativa.
 
 
O actual regime colocou Portugal numa situação insustentável. Sem possessões ultramarinas, sem um mercado interno minimamente relevante, sem indústria, agricultura e poupanças, o país mergulhou no vórtice da despesa feita com o único e exclusivo fim de satisfazer as amolecidas clientelas eleitorais. A política faz-se pelo curtíssimo prazo e o país soçobra no descontentamento de uma população nada esclarecida acerca das realidades contratualizadas pelos seus agentes políticos. O desastre é de tal monta que a chegada da Chanceler alemã - formatada pela provinciana mentalidade comunista da felizmente extinta RDA -, deve ser encarada de forma circunspecta, conscientes como deveríamos estar acerca da nossa total dependência em relação à boa vontade das autoridades alemãs, aliás bastante escrutinadas pela opinião pública do seu país. Os irados comentadores que têm passado as últimas duas semanas a vociferar dislates sem nexo, deveriam antes de tudo ter a perfeita consciência acerca do regime que vigora na Alemanha unificada, sem dúvida muito mais democrático, justo e confiável que aquele apresentado pela ignominiosa República Portuguesa. Ainda esta tarde, o visionar do cada vez mais caquético Eixo do Mal (SIC), consistiu num passatempo bem ao nível de certos Big Shows, sendo confrangedora a colecção de imbecilidades grasnadas por gente que não tem a menor ideia daquilo que é um Estado e as correspondentes regras que a diplomacia internacional há muito estabeleceu. Num Portugal que já recebeu Ceausescu, Fidel Castro, Samora e um infindável número de outras criaturas que para a história ficarão pelas piores razões, somos diariamente forçados a escutar uma descarada campanha que antes de tudo, tem como finalidade a desestabilização interna de um regime que sem dúvida vive a sua pior hora. Isto, quando dos portugueses se espera precisamente o oposto, dada a situação em que nos colocaram aqueles que hoje mais se indignam, os conhecidos executores de políticas, "direitos adquiridos", descarada incompetência e loucuras de duas gerações.
 
 
Em 1905, o Kaiser - cujo país, além de inquietante vizinho africano, era um importante credor de Portugal - foi bem recebido em Lisboa. A própria rainha D. Amélia dele conseguiu a promessa de moderação na sua próxima visita a Marrocos, então um ponto crucial no estabelecimento da balança internacional de poderes e por si só capaz de desencadear a guerra geral que todos temiam. Há 107 anos funcionou a boa diplomacia e o cavalheirismo, apresentando-se aqui o soberano alemão como obediente seguidor das regras da etiqueta e insistindo no exercício das suas habilidades poliglotas, confirmou a presença de Portugal nos normais circuitos diplomáticos das potências europeias.
 
 
Durante demasiado tempo a Alemanha despejou centos e centos de milhões nos cofres portugueses, não se sabendo bem quais os montantes exactos e qual o seu preciso destino. Os eleitores alemães disto têm a para nós embaraçosa consciência. Ninguém espera que amanhã a Senhora Merkel desembarque vestindo um qualquer uniforme de coronel honorário de um Regimento de Lanceiros do exército português, ou sequer se digne a ostentar uma condecoração - a propósito, já lhe conferiram alguma? - velha de séculos de passadas glórias de um país setecentos anos anterior à Alemanha unificada em 1871. Não sabemos se tal como Kaiser normalmente fazia, a Chanceler sabe exprimir-se noutra língua que não o alemão. Nesta época de acelerada decadência europeia nada disso é muito importante, exigindo-se apenas uma extrema prudência que como todos sabem, significa precisamente o oposto daquilo que os histéricos comentadeiros hoje descaradamente demonstram nas pantalhas dos noticiários: o medo.
 
 
Esta visita alemã, em muito supera aquelas outras protagonizadas por Schmidt ou Kohl, meros dirigentes de um país então dividido, sob a ameaça da força dos trinta mil panzers soviéticos estacionados desde o Báltico a Praga, totalmente dependente da protecção norte-americana e bem amarrado ao então ainda recente Eixo Paris-Bona.
 
 
Embora hoje devessemos estar a discutir outro assunto, não tenhamos medo e saibamos receber a Chanceler, tal como há 107 magistralmente o país soube acolher o temperamental imperador alemão. Infelizmente já não podemos contar com a impecável competência de D. Carlos e de D. Amélia. Se vivêssemos noutro tipo de regime, a Chanceler seria hoje conduzida por um ou dois empregados trajados de libré, apresentando os obrigatórios cumprimentos ao Chefe de Estado "sem poder", calmamente a aguardando no seu escritório. Tal não acontecerá, esperam-na transitórios e nervosos subalternos. Temos o que temos e tal como a catastrófica crise é de única e exclusiva culpa deste regime - dos bem conhecidos e inamovíveis gatunos, corruptos, incompetentes e devoristas de serviço em Belém, S. Bento, bancos e certas empresas -, o facto de não termos anfitriões à altura do momento e capazes de manterem uma certa distância protocolar, é também da nossa inteira responsabilidade. O "tu cá-tu lá" com que Merkel decerto tratará Cavaco Silva e Passos Coelho, seria completamente impossível no caso de contarmos outro tipo de pessoas em Belém e sobretudo, uma outra instituição que a todos orgulhosamente representasse. Com um pouco de desejável arrogância dinástica postada ao cimo de uma escadaria de aparato, sempre se salvariam as aparências.
 
 
Nuno Castelo-Branco
 

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