Em 1992, o texto da versão primitiva do Catecismo da Igreja Católica (CIC) sobre a pena de morte causou perplexidade entre os fiéis. Por esse motivo, foi reformulado em 1997, na edição típica do CIC, e de novo agora, a 2 de Agosto de 2018, mais de vinte anos depois, pelo Papa Francisco.
Na versão de 1992, o CIC afirmava: “reconhece-se aos detentores da autoridade pública o direito e a obrigação de castigar com penas proporcionadas à gravidade do delito, incluindo a pena de morte em casos de extrema gravidade, se outros processos não bastarem” (nº 2266). Não obstante a pena capital só ser legítima “em casos de extrema gravidade” e “se outros processos não bastarem”, vários bispos entenderam que este texto do CIC era excessivamente permissivo em relação à pena de morte. Neste sentido, foi também de grande transcendência o desenvolvimento dado a esta questão por São João Paulo II, na encíclica O Evangelho da vida, de 25 de Março de 1995.
Assim sendo, em 1997, na edição típica do CIC, restringiu-se ainda mais a lícita aplicação da pena capital, até ao ponto de a tornar quase impraticável: “a doutrina tradicional da Igreja, desde que não haja a mínima dúvida acerca da identidade e da responsabilidade do culpado, não exclui o recurso à pena de morte, se for esta a única solução possível para defender eficazmente vidas humanas de um injusto agressor.[…] Na verdade, nos nossos dias, devido às possibilidades de que dispõem os Estados para reprimir eficazmente o crime, tornando inofensivo quem o comete, sem com isso lhe retirar definitivamente a possibilidade de se redimir, os casos em que se torna absolutamente necessário suprimir o réu ‘são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes’” (nº 2267).
Não há exagero em afirmar que, nesta última versão do CIC se aboliu, de facto, a pena capital, embora, de iure, se mantivesse teoricamente essa possibilidade, mas apenas em casos tão singulares que, na realidade, são “praticamente inexistentes”.
Apesar de abolida, de facto, a pena de morte, o Papa Francisco quis ir ainda mais longe, reformulando, por rescrito de 2 de Agosto de 2018, o nº 2267 do CIC, que assim reza, agora: “Durante muito tempo, considerou-se o recurso à pena de morte por parte da autoridade legítima, depois de um processo regular, como uma resposta adequada à gravidade de alguns delitos e um meio aceitável, ainda que extremo, para a tutela do bem comum. Hoje vai-se tornando cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos. Além disso, difundiu-se uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado. Por fim, foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos sem, ao mesmo tempo, tirar definitivamente ao réu a possibilidade de se redimir. Por isso a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que ‘a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa’ (Francisco, Discurso aos participantes no encontro promovido pelo Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização, 11 de Outubro de 2017: L’Osservatore Romano, 13 de Outubro de 2017, 5, ed. port. 19 de Outubro de 2017, 13), e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo”.
Os termos do novo nº 2267 do CIC suscitam alguns problemas de natureza teológica, quer em relação à tradição anterior, nomeadamente o magistério eclesial de São João Paulo II, quer relativos à aplicação da agora decretada inadmissibilidade da pena capital.
Segundo o Cardeal Luis Francisco Ladaria, a alteração verificada entre a primeira versão, de 1992, a edição típica de 1997, e a redacção actual do nº 2267 do Catecismo da Igreja Católica é apenas uma evolução na continuidade. Com efeito, numa carta que, como perfeito da Congregação para a Doutrina da Fé, escreveu ao episcopado mundial na véspera desta última alteração, no passado dia 1 de Agosto, disse: “a nova formulação do n. 2267 do Catecismo expressa um autêntico desenvolvimento da doutrina, que não está em contradição com os ensinamentos anteriores do Magistério”. Em apoio desta sua interpretação, citou também vários textos de São João Paulo II e de Bento XVI que aconselham vivamente a não aplicação da pena de morte. Num artigo publicado no passado dia 2, no Osservatore Romano, significativamente intitulado “A pena de morte é inadmissível”, também o arcebispo Rino Fisichella, presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização, declarou: “estamos diante de um verdadeiro progresso dogmático, com o qual se explicita um conteúdo da fé”.
Em relação à inadmissibilidade da pena de morte, agora expressamente referida, põe-se a questão de saber em que moldes deve ser entendida e aplicada. O novo nº 2267 do CIC exclui absolutamente a possibilidade de que possa ser justa, em algum caso, mesmo excepcional, a pena de morte? Ou, pelo contrário, apenas preconiza que, como a sua aplicação só pode ser legítima em situações raríssimas, é de facto, por regra, inadmissível? No primeiro caso, tratar-se-ia, efectivamente, de uma mudança doutrinal mas, no segundo caso, a alteração agora verificada seria apenas formal, para dar mais ênfase ao carácter absolutamente excepcional da pena de morte.
Pode ser que o Papa Francisco tenha apenas emitido um juízo prudencial, sem intenção de estabelecer definitivamente uma nova doutrina católica sobre a pena de morte, em cujo caso a nova redacção do nº 2267 não deveria ser entendida como revogatória da doutrina anterior, nem com carácter normativo obrigatório. Neste sentido, a inadmissibilidade agora declarada significaria apenas um desejo da Igreja a ter em consideração, mas não como uma proibição absoluta da pena capital, que continuaria a ser moralmente legítima em situações muito excepcionais, como se dizia já na anterior versão do nº 2267 do CIC.
É muito louvável que a Igreja, honrando a sua tradição humanitária, proponha a não aplicação da pena capital, salvo quando, numa circunstância absolutamente excepcional, o bem comum o exija. Deus é misericórdia como, graças a Deus, o Papa Francisco não se cansa de afirmar, e é neste sentido que deve ser interpretada esta alteração do nº 2267 do CIC.
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