No dia 6 de Agosto ocorre o 40º aniversário da morte do beato Paulo VI, cuja canonização está já marcada para 14 de Outubro próximo. Recentemente, no passado dia 25 de Julho, teve lugar outra efeméride relativa ao Papa Montini: os cinquenta anos da encíclica “Humanae vitae”.
O magistério do Papa Paulo VI foi particularmente fecundo, sobretudo nos primeiros anos do seu pontificado romano. Em 1964, o sucessor de São João XXIII assina a “Ecclesiam suam”, que se pode considerar o texto programático do seu ministério petrino.
No ano seguinte, 1965, são publicados dois documentos pontifícios relacionados, respectivamente, com o culto mariano e a adoração eucarística: “Mense Maio” e “Mysterium Fidei”. Esta última encíclica recorda a doutrina da Igreja católica sobre a presença real, verdadeira e substancial de Cristo na Eucaristia, anatemizando quantos reduziam este santíssimo sacramento a um mero símbolo ou representação de Jesus de Nazaré, negando portanto o dogma da presença real do seu corpo, sangue, alma e divindade.
No ano seguinte, 1966, com “Christi Matri Rosarii”, Paulo VI incentiva a prática da mais tradicional devoção mariana: a reza do santo rosário, ou terço. No ano seguinte, 1967, foi a Fátima, onde se encontrou com a única vidente então viva, a irmã Lúcia, e presidiu à celebração dos cinquenta anos da primeira aparição de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, na Cova da Iria. Cinquenta anos depois, no dia 13 de Maio de 2017, o Papa Francisco também veio a Fátima, festejar o centenário das aparições e canonizar os videntes Jacinta e Francisco Marto.
Foi também em 1967 que Paulo VI deu ao mundo a sua encíclica sobre a doutrina social da Igreja, que recebeu um título muito sugestivo: “Populorum progressio”. Segundo o Papa Montini, o desenvolvimento é o novo nome da paz, porque as injustiças sociais são as principais causas das guerras, que impedem o progresso material e espiritual das nações. O sucessor de São João XXIII foi também o primeiro papa que discursou perante a assembleia geral da ONU.
É também deste ano de 1967 a sua encíclica “Sacerdotalis Coelibatus”. O celibato que, na Igreja católica latina é obrigatório para quantos exercem o ministério sacerdotal como presbíteros ou bispos, tem o seu fundamento bíblico no exemplo e vida celibatária de Cristo e de muitos dos seus primeiros seguidores, como São João e São Paulo. Mas esta disciplina, que não constitui nenhum dogma, também decorre da experiência que a Igreja católica fez durante os primeiros séculos da sua história, em que era permitida a ordenação sacerdotal de homens casados. O celibato, que sempre se viveu na Igreja católica, não só pelos religiosos mas também pelos leigos que, no intuito de melhor imitarem a vida de Cristo, optaram também por essa condição, veio a ser reconhecido como o estado mais apto e congruente com o ministério sacerdotal e, por isso, paulatinamente se introduziu no ocidente esta prática, até ao ponto de se converter em lei obrigatória para todos os sacerdotes e bispos católicos latinos. Em nenhum caso, contudo, foi ou poderá ser válida a ordenação de mulheres na Igreja católica, mas na Igreja católica oriental, que se rege pelo seu próprio código canónico, permite-se a ordenação sacerdotal de homens casados, reservando o episcopado para os célibes que, quase sempre, procedem do clero regular.
Mas o mais emblemático texto do Beato Paulo VI é, sem dúvida, a Humanae vitae. Foi também a sua derradeira intervenção magisterial: nos últimos dez anos do seu conturbado pontificado, o Papa Montini não publicou mais nenhuma encíclica.
Na Humanae vitae, contrariando vários teólogos e até alguns bispos, Paulo VI, ao mesmo tempo que introduziu o conceito de paternidade e maternidade responsáveis, declarou ilícitos os métodos anticoncepcionais não naturais. Esta condenação, confirmada depois pelos seus sucessores na cátedra de Pedro, é já um princípio clássico da teologia moral católica.
O Beato Paulo VI intuiu que este seu texto iria provocar algumas reacções desagradáveis porque, na sua introdução, profeticamente escreveu: “É de prever que estes ensinamentos não sejam acolhidos facilmente por todos”. Mas essa aparente impopularidade não era senão a garantia da sua autenticidade evangélica. Com efeito, a Igreja está chamada a ser, no esteio do seu divino fundador, “sinal de contradição” (Lc 2, 34).
Cinquenta anos depois da publicação da polémica “Humanae vitae”, já é possível reconhecer o seu carácter profético. É certo que esta encíclica se propunha evitar, pelo menos entre os casais católicos, o recurso aos meios anticonceptivos artificiais e, nesse sentido, não parece ter sido especialmente convincente: não obstante a proibição papal, não só bastantes fiéis recorrem habitualmente a esses meios, como também alguns padres e bispos católicos aprovam o seu uso, em contradição com os ensinamentos de Paulo VI e dos seus sucessores na cátedra de Pedro.
Contudo, a “Humanae vitae”, embora tão contestada por teólogos e pastores, foi absolutamente certeira na sua previsão das funestas consequências decorrentes da prática dos métodos anticoncepcionais artificiais. Ao contrário do que alguns ingenuamente pensam, a razão da proibição não reside principalmente no carácter técnico, ou artificial, desses meios, mas na sua essência antinatural, por oposição aos meios naturais, que a Igreja católica aceita e recomenda, sempre que tal decorra da recta aplicação do princípio da paternidade responsável. Paulo VI era assumidamente favorável aos avanços científicos e tecnológicos, também quando aplicados ao processo biológico da geração humana, mas só se respeitassem a dignidade da natureza humana.
No contexto da ‘Humanae vitae”, o contrário de ‘natural’ não é ‘artificial’, porque a técnica é bem-vinda quando cumpre a sua nobre missão de melhorar e aperfeiçoar a natureza. O contrário de natural é, no que respeita à anticoncepção, antinatural, ou seja, qualquer meio que pressuponha o desrespeito pela intrínseca dignidade da natureza humana.
Grande parte da actual investigação e manipulação genética é feita sem consideração pela condição humana do embrião, reduzido a um mero produto de uma operação de engenharia biológica que, se for considerado excedentário, se elimina sem qualquer escrúpulo, ignorando a sua intrínseca e inalienável dignidade humana. Também às crianças geradas por estas vias artificiais, se nega o essencial direito a nascer no seio da sua família natural, constituída por pais e irmãos. A fabricação de seres humanos através das técnicas da fecundação ‘in vitro’, ou por via do recurso a barrigas de aluguer, são práticas que, embora tecnicamente possíveis, são eticamente reprováveis, na medida em que são contrárias à natureza e dignidade do ser humano concebido por essa via artificial, ou seja antinatural.
Os anticonceptivos artificiais dissociam os dois fins próprios do acto conjugal –unitivo e procriativo – na medida em que, artificialmente, se impede que o acto sexual possa ser fecundo. Também, a seu modo, a fecundação ‘in vitro’ e as barrigas de aluguer permitem que a geração aconteça sem a prévia união sexual dos progenitores. O anonimato do dador masculino, na fecundação ‘in vitro’, ou da mulher que concebeu e que serviu de barriga de aluguer, impedem que o filho assim gerado nasça e viva no ambiente natural da sua família, a qual deveria ser formada pelos seus progenitores naturais. Reduzido à triste condição de filho de pai incógnito, ou de filho sem mãe, é-lhe negado o ambiente familiar natural, que é necessário para o seu saudável desenvolvimento físico, psíquico e espiritual.
Um tal exercício da paternidade e da maternidade não só são antinaturais como irresponsáveis, na medida em que não é respeitada a dignidade do novo ser humano, que é concebido como se fosse um objecto de outrem. Quando, amanhã, os filhos de ninguém, porque gerados por um pai anónimo ou de uma incógnita barriga de aluguer, reclamarem o seu inalienável direito a um pai e a uma mãe, como é natural, muitos reconhecerão quanta sabedoria havia na encíclica ‘Humanae vitae’, do bem-aventurado Paulo VI.
P.S. Quando esta crónica já estava escrita, foi noticiada a nova versão do nº 2267 do Catecismo da Igreja Católica. Mais do que uma alteração da doutrina, trata-se de uma melhor explicitação do que é o actual entendimento da Igreja em relação à pena capital. Sobre este tema, a considerar numa próxima crónica, remeto para o que aqui escrevi, em “A Igreja e a pena de morte”, a 4 de Março de 2017.
Fonte: Observador
Sem comentários:
Enviar um comentário