sábado, 4 de agosto de 2018

Aqueles que desdenham do patriotismo

Foto de Nova Portugalidade.

Na apologia que precede a Década 4.ª da Ásia, João de Barros - talvez o inventor do patriotismo português - desabafava as mágoas que lhe haviam causado o entusiasmo e o ciclópico trabalho a que dedicara trinta anos da sua vida. Não sendo o cronista do Reino, mas feitor da Casa da Índia, redigiu as quatro primeiras décadas sem receber qualquer recompensa. Os seus inimigos não lhe perdoaram. As murmurações perseguiam-no, acusando-o de aplicar o seu tempo em ofício que não era do interesse do Rei.


"E junto [d'El Rei Midas = D. João III], (...) uma mulher chamada Calúnia, que é a falsa acusação. E logo junto dele, juíz [Rei], estavam duas mulheres, que eram a Ignorância e [a] Suspeita; e a figura da Calúnia estava mui afeitada por mãos de duas moças que tinha junto de si, chamadas Traição e Insídia, que espreitava vidas alheias; a qual Calúnia estava mui furiosa e indignada (...). E diante da Calúnia ia uma mulher já mui velha, disforme em figura torpe e vil em hábito, que via muito, chamada Inveja".

Sem poder responder directamente aos seus detractores, Barros lembrou a história da calúnia de Apeles (pintor da Antiguidade que fora difamado junto do Rei Ptolomeu), o qual, para se defender, pintara numa tela um animal que reunia todas as características dos seus inimigos. "Tem [esse animal] mais por condição ranger por inveja, ladrar por ódio, morder por vingança e, o que é pior, é que ninguém lhe sabe em que parte há-de sossegar e quietar o seu espírito, porque, quando o quer fazer, anda redondo, até que se enrosca à maneira da cobra"(1).

Barros foi o criador da historiografia ultramarina, género discursivo empolgante, grandioso e patriótico que Camões certamente terá lido. Num tempo em que o os soldados práticos campeavam e em que o serviço do Rei justificava a riqueza fácil, poucos lhe perdoaram ter vivido imune ao demónio do ouro, ele que vivia cercado das riquezas que afluíam da Ásia a Lisboa. Barros escreveu as Décadas sem outro interesse que o edificante, contar os feitos e glórias que doutro modo se perderiam na memória da humanidade.

Ou não conhecemos, todos nós - aqueles que tentam fazer algo pelo país - o latir desse animal que Barros tão bem conheceu ?


MCB

(1) Andrade, António Alberto Banha de, João de Barros: historiador do pensamento humanista português de Quinhentos, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1980.

Sem comentários: