terça-feira, 7 de agosto de 2018

Por um Museu dos Descobrimentos

Os Descobrimentos portugueses não inauguraram o Paraíso na Terra, mas deram origem ao mundo moderno tal como o temos, com os defeitos e virtudes inerentes a toda a construção humana.

A intenção de organizar um “Museu das Descobertas” anunciada pelo presidente da Câmara de Lisboa suscitou uma reacção histérica. Se me perguntam se concordo com a ideia, respondo: plenamente. Se me perguntam pelo nome, não. Prefiro “Museu dos Descobrimentos”.
A nossa língua é rica em subtis cambiantes semânticos, pelo que, ao contrário do francês ou do italiano, faz uma diferença entre descoberta descobrimentoDescoberta usa-se sobretudo para coisas materiais e pode ser meramente fortuita: a descoberta do fogo na Pré-História, a do magnetismo terrestre pelos chineses da época Sung (960-1279), a da radioactividade pelo casal Curie, ou do ouro na Austrália, no século XIX.
Ao invés descobrimento denota um processo activo e voluntário de exploração geográfica, como em 1972 mostrou Armando Cortesão no seu artigo “Descobrimento” e Descobrimentos na revista Garcia de Orta. Eu dediquei-lhe um artigo relativamente extenso que enviei para publicação na revista Brotéria, onde, espero, sairá logo que haja paginação disponível. Aqui, não pretendo senão deixar um breve apontamento.
O abaixo-assinado contra o projecto do museu que por aí circula enferma de muita ignorância. Em primeiro lugar, da nossa própria língua, em que achamento, descoberta, descobrimento invenção têm sentidos vizinhos mas não coincidentes. O que o autarca lisbonense quereria dizer era certamente “Museu dos Descobrimentos”, termo consagrado por largo uso, que é datável de c. 1470, para significar o que até aí era designado por enquerer, saber parte, colher certa enformação, haver manifesta certidão, etc. São tudo expressões que denotam um processo minucioso de colheita de informações, activo e interactivo, que ultrapassa em muito a ideia de acharencontrar, topar com, que só se aplicaria com inteira justeza a terras desconhecidas e despovoadas.
Argumentam-me que as Américas haviam sido, muitos séculos antes de Colombo, descobertas pelos chamados “índios” que as habitavam. É verdade. Tão verdade que me recorda a elegia que os soldados de Jacques de Chabannes, senhor de La Palisse, morto em combate a 25 de Fevereiro de 1525 na batalha de Pavia, compuseram em sua honra: un quart d’heure avant sa mort, il était encore en vie…
Descobrir é um verbo pessoal, que conota um sujeito pensante, cujo ponto de vista, necessariamente subjectivo, assume. Michel Chandeigne publicou há anos em Paris um livro intitulado L’expédition de Gonneville et la découverte de la Normandie par les Indiens du Brésil: de facto, em 1505, Binot Paulmier, senhor de Gonneville, ao regressar do Brasil onde aterrara por acaso numa viagem cujo destino era a Índia, trouxe para Honfleur o filho de um morubixaba (chefe tribal) chamado Essoméricq, que acabou por adoptar e casar com uma sobrinha sua. Foi assim que ele descobriu a Normandia — que, bem entendido, existia muito antes de ele dela ter tomado conhecimento. É, porém, evidente que não foi Essoméricq, nem nenhum dos índios do Brasil, quem descobriu o caminho marítimo para a Europa, onde chegou graças aos conhecimentos náuticos dos normandos, arrimados por seu turno aos dos pilotos portugueses que haviam contratado a peso de ouro.
É porque descobrir envolve as ideias de “reconhecer, explorar, cartografar” que se pode aplicar a regiões de cuja existência se sabia há muito, mas imperfeitamente. Foi o que se passou, por exemplo, com o Amazonas, percorrido do Peru até a foz em 1541-42 por Francisco de Orellana, e de novo em 1560 por Lope de Aguirre: em 1639 foi, uma vez mais, a mando de Felipe IV, descido pelo jesuíta Cristóbal de Acuña, que inquiriu diligentemente das populações ribeirinhas, seu modo de vida e seus costumes, do que deu pormenorizada conta no seu livro, expressivamente intitulado Nuevo descubrimiento del Gran río de las Amazonas, impresso em Madrid em 1641.
Historicamente mais grave é o erro crasso de afirmar que 60 ou 70 anos antes de Vasco da Gama, no reinado de Yung Lo (1403-25), já o almirante chinês Cheng Ho descobrira, ou estivera prestes a descobrir, o caminho marítimo para a Europa pela via do Cabo: nenhuma das fontes de que dispomos para a história dessas viagens menciona a sua presença a sul de Mogadoxo e Brava, na Somália, a milhares de quilómetros do Cabo da Boa Esperança, sitas no hemisfério norte, onde reinam ainda as monções que a cada seis meses se invertem.
Não é, todavia, crível que alguma vez o tivesse podido alcançar: com efeito utilizava juncos, navios de fundo chato, concebidos para manobrarem nos esteiros, estreitos e canais do Extremo Oriente, mas incapazes de bolinar; e à latitude do Cabo reinam todo o ano os ventos gerais de oeste, que colhem o navio pela proa. Não é por acaso que a maioria dos naufrágios portugueses que a História Trágico-Marítima registra tenham tido lugar na costa do Natal, com naus, que embora providas de quilha arvoravam pano redondo, exceto no mastro da mezena, e mui dificilmente conseguiam bolinar, que os ventos dominantes e as correntes rechaçaram para nordeste, acabando por dar à costa.
Tecnicamente, se alguém estava apetrechado para descobrir o caminho marítimo para a Europa, não eram os chins, mas os árabes do Omão e da Costa Suahíli; mas não o descobriram…
Se os portugueses puderam explorar tanto as costas atlânticas como os mares do Oriente até o longínquo Japão, foi porque possuíam técnicas de navegação adequadas, nomeadamente a navegação por latitudes, aplicável em praticamente qualquer ponto do Globo. Embora o processo de determinar a latitude pela altura meridiana do sol tivesse sido inventado por Hiparco (190-125 A. C.), foi a mando de D. João II que dois técnicos judeus, Mestre José Vizinho e Mestre Rodrigo o simplificaram e adaptaram à náutica. Requeria a utilização de tábuas astronómicas que dessem a declinação do sol para todos os dias do ano, mas os portugueses dispunham das dos Libros del Saber de Astronomia de Afonso X, o Sábio, de Castela, traduzidos de textos árabes que retomavam e aperfeiçoavam as da época helenística.
Nos descobrimentos portugueses convergiu assim o saber acumulado por gregos, árabes, judeus, italianos, normandos e até chineses: a vela latina, que permitia bolinar, fora inventada no Mar Vermelho, varrido todo o ano por ventos do quadrante norte; a técnica de construção de cascos capazes de resistir aos mares mais agitados provinha sobretudo das costas do Mar Norte, frequentemente batido pelos temporais; as propriedades da agulha magnética haviam sido descobertas na China, mas a arte de a fazer girar sobre um eixo articulado dentro de uma bússola vinha de Itália. De Itália e de Maiorca viera a carta-portulano, com suas múltiplas linhas loxodrómicas, rumadas pela agulha magnética, indispensável para a navegação por rumo e estima, de que gradualmente se passou à navegação por diferenças de latitude e, finalmente, por latitudes e longitudes.
É verdade que a longitude (que jamais se pode determinar pelos astros, devido à rotação da Terra) apenas pôde ser medida com exatidão quando c. 1725 John Harrison inventou o cronómetro. Na prática, portanto, fazia-se a estimativa do caminho percorrido, convertendo as léguas em graus de longitude, o que não é fácil: devido à convergência dos meridianos para os polos, o grau de longitude apenas é equivalente ao de latitude sobre o equador; alhures, há que multiplicá-lo pelo cosseno da latitude para obter a sua medida exata. Mesmo assim chegava-se, muitas vezes, a resultados surpreendentemente precisos: no atlas de c. 1537 conservado no Archivio di Statod e Florença e atribuído a Gaspar Viegas, o primeiro a conter uma escala de longitudes, as ilhas de Maluco estão debuxadas a 145° E do Cabo Verde, no Senegal, o que é de uma aproximação espantosa, pois a diferença real de longitude entre os dois pontos é de exactamente 144°; e um relato do naufrágio da nau S. Paulo em Samatra em 1571 afirma que a ilha de Amesterdão, entrevista já por Elcano em 1522 e agora avistada de novo, “jaz norte-sul com o Cabo Comorim”, no que erra por apenas 30′.
É importante notar que os Descobrimentos Portugueses não só revelaram paragens mal conhecidas ou desconhecidas, como permitiram uma correta concepção do mundo. Havia quem exagerasse as dimensões do globo, reduzindo a “terra habitada” (o Velho Mundo) a um dos dois ou quatro supercontinentes existentes, demasiado distantes entre si para se poder passar de um a outro. Ligada a essa concepção arcaica e errada aparecia geralmente a noção da inabitabilidade da zona tórrida, entre os trópicos de Câncer e de Capricórnio, devido ao excessivo calor; como o Homem fora criado no hemisfério norte e não podia passar ao oposto sem atravessar aquela inóspita zona, a zona temperada do sul era “habitável mas desabitada”.
Foram os descobrimentos portugueses que arredaram definitivamente essas concepções erróneas. A habitabilidade das regiões intertropicais começou a tornar-se evidente logo em 1444, quando Nuno Tristão, ultrapassando a faixa saariana, chegou à “Terra dos Negros” (Senegal) em plena zona tórrida.
É de protótipos portugueses que derivam tanto os planisférios impressos na Europa no século XVI, como os mais antigos que se conhecem na China e no Japão. Como muito bem vincou Joaquim Barradas de Carvalho, devido aos Descobrimentos o Renascimento português apresenta um cunho decididamente experimentalista, em contraste com a tendência arcaizante e livresca da maioria das correntes do humanismo europeu, incapazes de se desmamar dos Antigos.
Como todas as grandes transformações históricas, os Descobrimentos — de que os portugueses foram em parte obreiros, em parte meros catalisadores, compendiando o saber dos seus predecessores — acarretaram, é certo, sofrimentos para muita gente, através de efeitos laterais que vão da intensificação da escravatura à difusão da sífilis americana no Velho Mundo, passando pela da varíola no Novo.
Não inauguraram, por isso, o Paraíso na Terra; mas deram origem ao mundo moderno tal como o temos, com os defeitos e virtudes inerentes a toda a construção humana. Qualquer pessoa, porém, o pode repudiar e recorrer por exemplo a coups-de-poing de pedra lascada ou polida em vez de facas, para descascar a fruta…
  • Luís Filipe Thomaz
Historiador
Fonte: Observador

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