Os quatro autores de um extenso artigo que veio há dias a público — Patrícia Martins Marcos, Rui Gomes Coelho, Inês Beleza Barreiros e Pedro Schacht Pereira — tentaram levantar muitas questões e atingir vários alvos em simultâneo: as instituições eclesiásticas, em particular a Companhia de Jesus; o padre António Vieira; a estátua que o evoca e que existe no Largo Trindade Coelho, em Lisboa; o escultor Marco Fidalgo, que a esculpiu; um conjunto de pessoas que os autores designam, sem as nomear, por “comentadores grisalhos” e “guardiães do consenso lusotropical”; etc. Destes alvos o principal ou prioritário é o padre Vieira. Aliás, de há uns anos para cá, um grupo de pessoas de extrema-esquerda tomou o padre de ponta e fez dele uma figura histórica a abater. Acusam-no de ser uma fraude, um hipócrita, um falso humanitarista que — asseguram —, defendia o tráfico e a escravização dos negros, ao mesmo tempo que se opunha à escravização dos índios. Garantem, também, que as posições de Vieira quanto ao problema da escravatura não teriam especial relevância, pois ele não seria um pensador original nem um pioneiro, mas um mero intérprete e copiador das ideias e argumentos de outros.
Esta última acusação levanta um problema que não se coloca, ou que só se coloca na cabeça dos autores do artigo. O padre, nesta área, nunca quis ser inteiramente original. As suas ideias a esse respeito estribam-se em dois mil anos de pensamento ocidental sobre a questão e são o resultado lógico desse pensamento. Vieira não escondia as suas fontes, que eram, essencialmente, a Bíblia, os padres da Igreja e a cultura clássica. Quem pegar, por exemplo, no seu Sermão Vigésimo Sétimo, de 1633, verá que refere Virgílio, Séneca, São Paulo, Santo Agostinho e muitos outros, para se apoiar na autoridade desses autores e revelar o bem fundado da sua própria argumentação, como era, então, de boa norma.
De todo o modo, e mesmo que absurdas, as acusações que têm recentemente sido feitas a António Vieira inserem-se no propósito de ataque às principais figuras da nossa história nacional. A defesa dessas figuras e, acima de tudo, da verdade histórica, faz-se revelando e explicando a razão de ser da sua actuação, no tempo. Há cerca de ano e meio tive ocasião de mostrar, no Observador, as razões pelas quais o padre António Vieira não pode ser considerado um defensor da escravatura dos africanos. É verdade que, como todas as pessoas da sua época, a aceitava, mas aceitar ou tolerar é muito diferente de defender ou promover. Para quem não me leu na altura ou tenha, agora, interesse em reler esses meus argumentos, que vêm a propósito nos dias que correm, remeto para o artigo em questão. Aqui, para não estar a repetir por outras palavras o que já disse no referido texto, julgo que será mais útil explicar por que motivo o padre Vieira e muitos outros membros da Igreja aceitavam a escravidão dos negros, mas rejeitavam e combatiam a dos índios. Qual a origem e a razão de ser deste duplo critério na avaliação das duas escravidões, que era corrente na época em que Vieira viveu?
Desde o descobrimento da América que viajantes e missionários tiveram tendência para encarar o Novo Mundo como algo próximo do ideal da natureza e o nativo como um ser inocente e feliz que, na imagética cristã, evocava um tempo anterior à expulsão do Paraíso. Para observadores como o dominicano Bartolomeu de Las Casas, por exemplo, os ameríndios eram gentes humildes e pacíficas, “as mais simples” que Deus criara, povos sem quaisquer “maldades nem fingimentos”, “sem rancores, sem ódios”, “sem desordens nem tumultos”. Como poderiam escravizar-se essas “mansas ovelhas”, esses filhos do Paraíso, aparentemente ignorantes do pecado? Esta visão era comum entre os clérigos e a tendência para libertar o escravo índio foi-se impondo, teve os seus paladinos como o próprio Bartolomeu de Las Casas, o também dominicano Jean-Baptiste du Tertre ou o jesuíta António Vieira — que merece ser recordado, em estátua e de outras formas, por essa e muitas mais razões. Apesar de desaires e retrocessos, a acção desses homens contribuiu para que se criasse um corpo de leis que protegeu os nativos da exploração desenfreada dos colonizadores.
Mas os africanos estavam, aos olhos dos europeus de então, numa posição muito diferente. Tendencialmente, eram associados aos mouros e mesmo quando exteriores ao Islão, pertenciam ao mundo bíblico, o mundo que melhor ou pior já estivera exposto à mensagem dos apóstolos. Os critérios que tinham levado à protecção do índio não se lhes aplicavam, ou só se aplicavam em parte. Isto não significa que não houvesse humanidade na relação com os escravos negros. António Vieira confessava-se impressionado com a dureza e iniquidade do tratamento infligido aos africanos. Entristecia-se com o espectáculo das naus que chegavam de Angola carregadas de centenas de negros; revoltava-se com o contraste entre a humildade dos pobres cativos, famintos, desvalidos e nus, e a soberba, opulência e brutalidade dos seus senhores. Em Cartagena de Las Índias, na actual Colômbia, o padre jesuíta Pedro Claver ia ao ponto de descer ao porão e à coberta dos navios negreiros recém-chegados de África a fim de entrevistar os escravos, tendo o cuidado de os beijar um a um e de os tranquilizar. E há muitos outros exemplos de membros da Igreja que se esforçavam por ter uma atitude humana e caridosa para com os africanos.
Todavia, admitiam a sua escravidão. Porquê? Por várias razões, algumas ligadas à percepção e interpretação do que seria a vontade divina; outras, mais pragmáticas, relacionadas com a resistência dos africanos às doenças e ao trabalho físico; outras, ainda, porque os negros provinham de regiões e de sociedades muito diferentes das americanas. Eram habitantes de nações mais complexas, que possuíam governo, conheciam o comércio e a agricultura, e onde já se praticava a escravidão. Ou seja, aquelas pessoas já eram escravas quando chegavam à mão dos europeus. Como explicaria, mais tarde, o bispo Azeredo Coutinho, “sendo pois diversas as circunstâncias em que se achavam os pretos de África e os índios no tempo das descobertas, foram diversas as leis; e como a justiça das leis não é absoluta mas sim relativa às circunstâncias, ficou cada uma das ditas leis — que proibiam a escravidão entre os índios, e a autorizavam entre os negros — sendo justa”.
É este tipo de pensamento que justifica a dualidade de critérios, que era muito comum não só na época em que Vieira viveu, mas antes dela, pois já existia, por exemplo, no tempo de Bartolomeu de Las Casas que, à semelhança de Vieira, foi alguém que protegeu os índios e tolerou a escravidão dos negros. E outro tanto se diga a respeito do grande jesuíta Manuel da Nóbrega que, chegado ao Brasil em 1549, procurou corajosamente combater os maus tratos e a escravização dos índios, mas admitiu a importação de escravos negros. Ao contrário do que por aí se afirma ou sugere o padre António Vieira não era uma figura anómala, perversa e injusta que favorecia os naturais da América para prejudicar os da África. Era apenas alguém do século XVII que enfrentava os dilemas e problemas da sua época, e que os pensava com as ideias e as soluções dessa época.
Essa é, no fundo, a principal razão pela qual António Vieira é actualmente atacado. Os que o acusam são ou fazem-se desentendidos, isto é, são pessoas que não têm, ou não querem ter, a compreensão do que é a História e a relatividade das coisas de acordo com cada tempo. Desentendidos que em vez de verem, em Vieira, alguém que se destacou na sua época como missionário, diplomata, orador, escritor, defensor dos direitos dos índios, preferem censurá-lo por não ser o que ninguém então era. Importa dizer e sublinhar pela centésima vez que, no que toca à escravidão dos negros, não havia abolicionistas no século XVII. Os que viveram nessa época aceitavam o princípio da escravidão, ainda que pudessem contestar certos dos seus aspectos ou modalidades, e a crueldade de muitos senhores. E não se venha com o argumento de que os escravos rejeitariam a escravidão, se pudessem, porque esse argumento é ignorante e falso. Aqueles escravos que escaparam das plantações e que viveram em liberdade no grande quilombo de Palmares, que existiu no tempo de Vieira, também possuíam escravos que utilizavam na agricultura e noutras funções no interior do quilombo. E houve muitos outros casos como o de Palmares.
Era assim que as coisas se passavam no século XVII e eu tentarei, sempre que possível e na medida das minhas capacidades, mostrar às pessoas de boa-fé a diferença de concepções e de atitudes entre épocas idas e a nossa. A História não é feita para julgar, mas sim para aprofundar e compreender. É essa a boa norma no que diz respeito ao conhecimento do passado. O que não é de boa norma, nem emocionalmente maduro, é a actual sanha persecutória e o esforço de demolição de algumas figuras maiores da nossa história e da nossa cultura.
João Pedro Marques
Fonte: Observador
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