Com certeza que o 25 de Abril é uma data importante no calendário nacional, nomeadamente para aqueles que mais sofreram o anterior regime e mais lutaram pela reconquista da liberdade. Como outras datas históricas – recorde-se que o 5 de Outubro de 1910 significou um retrocesso na liberdade religiosa e de voto – também o 25 de Abril é passível de interpretações menos positivas, se se tiver em conta o PREC e a desastrosa descolonização, que deixou várias ex-colónias portuguesas mergulhadas em sangrentas guerras civis. Não obstante, evocar o 25 de Abril é salutar, não só para celebrar a liberdade, mas também para recordar as experiências negativas do ‘fascismo’ e do ‘social-fascismo’, que o antecederam e sucederam, respectivamente.
Que a AR entenda comemorar uma data, certamente relevante na história de Portugal, é justo e necessário, mas não o deveria fazer quando o país está de luto e vive as horas mais dramáticas dos últimos quarenta anos da sua História.
Contra a comemoração oficial, na modalidade decidida pela AR, elevaram-se já várias vozes – entre outras, as de dois ex-presidentes – e surgiu uma petição pública que, em poucos dias, já foi assinada por cem mil cidadãos. É óbvio que se trata de uma questão que, por não ser religiosa, há católicos que são a favor e contra esta iniciativa, nem partidária, é obviamente opinável.
Seria disparatado supor que todos os que preferiam uma solução diferente da que foi adoptada, são ‘fascistas’ e inimigos da democracia e da liberdade, como também não se pode afirmar que todos os que são a favor da sessão parlamentar são ‘sociais-fascistas’ e antipatriotas. São discursos destes que revelam, precisamente, uma mentalidade autoritária e intolerante, ou seja, antidemocrática. Certamente, há democratas e patriotas de ambos os lados e também há quem esteja presente por exigências institucionais (representantes dos órgãos de soberania e de confissões religiosas, embaixadores, etc.).
Não é passível de crítica o normal funcionamento do parlamento, mas sim a realização, nestas circunstâncias, de uma comemoração que é, pela sua própria natureza, festiva. De facto, a evocação do 25 de Abril, em sessão solene da AR, não é, neste momento, necessária para o bem dos portugueses: não está em causa a formação de um novo governo, a aprovação do Orçamento Geral do Estado, ou qualquer decisão urgente.
Os profissionais de saúde, os capelães hospitalares e os membros das forças de segurança, entre outros, não podem deixar de exercer as suas funções em tempo de pandemia, porque assim o exige o bem comum. Mas não consta que, estando o país no estado em que está, organizem comemorações, até porque, nestes dias, muitos deles tiveram de abdicar dos mais queridos aniversários familiares. Por isso, a insistência nesta celebração parlamentar, em pleno estado de emergência, foi entendida por muitos milhares de portugueses como um acto provocatório, senão mesmo ofensivo.
Provavelmente, nem todos os nossos governantes e deputados estão conscientes dos sofrimentos que a actual situação representa para tantos portugueses. Os que, cumprindo todas as normas de prevenção em vigor, continuamos ao serviço dos mais necessitados, sabemos quanto sofrimento há numa cerimónia fúnebre sem acompanhamento familiar; quanta saudade há nos que não podem sequer ver e abraçar os seus familiares mais próximos; quanta tristeza em tantas famílias; quanta mágoa nos mais velhos, retidos em lares de que não podem sair e a que não se pode ir; quanta incerteza quanto ao futuro próximo, etc. Em pleno estado de emergência, tive de celebrar um casamento inadiável, a que nem sequer os irmãos dos noivos puderam assistir, porque a participação teve que ser limitada aos contraentes, seus pais, duas testemunhas e o oficiante, num total de apenas nove pessoas!
Ainda bem que a Igreja, por respeito pelos mortos, doentes e suas famílias, suspendeu os festejos da mais importante celebração litúrgica do ano: a Páscoa. Não cancelou a celebração religiosa do mistério da paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, mas fê-la sem comemorações festivas multitudinárias, com a sobriedade que as circunstâncias exigem, e que seria de esperar também do Estado, se porventura tivesse a mesma sensibilidade social e humana.
Não se trata de ser a favor ou contra a Páscoa – é óbvio que todos os cristãos não podem deixar de festejar a ressurreição de Jesus Cristo! – nem de ser a favor ou contra o 25 de Abril porque, para um democrata, a liberdade e a democracia não se discutem. Trata-se apenas de respeitar o sofrimento humano, que a Igreja nunca entende como alheio, e que o Estado deveria também fazer próprio, suspendendo ou adiando comemorações que, obviamente, não fazem sentido quando os mortos são já perto de novecentos e os infectados mais de 22 mil, o que significa quase mil famílias em luto e cerca de vinte mil vivendo o sofrimento de ter alguém infectado. É razoável que tantos milhares de portugueses estejam a sofrer e o parlamento a comemorar?! É sensato que os idosos estejam fechados nas suas casas e os deputados, no parlamento, a festejar o 25 de Abril?! E a quem não pôde ir ao hospital, ou ao lar, despedir-se do cônjuge, do pai ou mãe, antes de se finar, como explicar que aos deputados tenha sido dado livre-trânsito, para irem ao palácio de São Bento, festejar a liberdade?!
Não podia ter sido mais eloquente a atitude do Papa Francisco, quer na sobriedade da celebração da bênção urbi et orbi, quer na dolorosa Via Sacra rezada também na praça de São Pedro, confrangedoramente vazia. Na prece do sucessor de Pedro estavam presentes as dores de todos os cristãos e de toda a humanidade: o luto pelos mortos, o sofrimento dos doentes, o cansaço dos profissionais de saúde, a angústia dos parentes, a saudade das famílias separadas, a solidão dos confinados e a incerteza do futuro. Mas, na voz quebrada de Francisco, estavam também representadas as jubilosas expectativas de todos os crentes, a força da solidariedade humana, a certeza da vitória da esperança e a fé na vida que, em Cristo ressuscitado, venceu a morte.
P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Fonte: Observador
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