“A imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados”.
Millor Fernandes
Millor Fernandes
A fazermos fé na frase em epígrafe, o que temos são armazéns de secos e molhados. Quando a imprensa recebe dinheiro do Estado ou está submetida ao conselho de direção de um grande grupo económico privado não é oposição mas megafone de interesses específicos.
Houve um tempo em que a imprensa foi fundamental para a construção da cultura Ocidental. Informação, liberdade e pluralidade de pensamento e opinião, debate, espírito critico, divulgação literária, científica, política, etc., eram comuns nos projetos singulares da imprensa e havia uma verdadeira liberdade, independência e diversidade. O jornalismo era incómodo. Esse tempo é passado, a importância da imprensa tem outro sentido, significa algo perturbador.
Autores como Karl Kraus (Viena, 1874-1936) começaram a perceber algo que destruíra o papel fundamental da imprensa (por imprensa hoje consideramos não só os jornais mas todos os media).
O diagnóstico de Kraus não só se foi confirmando como os sintomas e as causas se agravaram a níveis impensáveis. A importância que atribuía à linguagem e ao sentido permitiam-lhe perceber como a banalização e manipulação dos mesmos eram cada vez mais decisivas para se compreender o mundo contemporâneo. A imprensa e a política eram exemplos acabados de uma decomposição acelerada do melhor da cultura Ocidental e da transformação desta numa obra sofisticada de uniformização e manipulação de um pensamento totalitário. Os meios de comunicação tornaram-se principalmente negócios e instrumentos de propaganda. Não é fácil atualmente distinguir um jornal de uma agência de comunicação e a informação de press release. A imprensa morreu, o ideal do “jornalista” é uma memória longínqua, as grandes investigações e até a defesa apaixonada de causas fazem parte de um passado distante. Grupos económicos com mais ou menos poder e em estreita relação com o poder político ou mesmo indistintos destes, as respectivas castas mediáticas que nasceram à sombra da decomposição das auto-intituladas democracias liberais Ocidentais, dominam a imprensa (os tudólogos, especialistas em generalidades, os políticos disfarçados de jornalistas, e os jornalistas disfarçados de políticos, os amigos e conhecidos, formam um grupo que vive para propagar e difundir, não o que são as coisas ou o seu ponto de vista, mas aquilo que é a narrativa oficial, diabolizando tudo o que não segue o guião pré-escrito da realidade).
A degradação da imprensa é uma consequência de uma decomposição mais profunda, mas também um sintoma como tudo se transformou em negócio e manipulação. Tudo é objeto de consumo e técnica publicitária, sejam objetos ou ideias. Não há muito a permitir distinguir o trabalho jornalístico corrente da promoção de um produto, com a exaltação das suas qualidades, as respetivas campanhas e promoções, assim como a desqualificação mais ou menos velada dos produtos rivais. As técnicas de adestramento e a obra de uniformização das massas transformaram os media num veículo fundamental. Quem quer ser livre, morrerá à fome, como escrevia Cioran.
Os media subjugaram-se e ou foram assimilados por interesses económicos, políticos e até culturais. A sua função é debitar de modo repetido determinadas mensagens e slogans para que o consumidor interiorize que ideias deve repetir e aceitar. A sociedade da informação é agora a sociedade da manipulação massiva. Kraus no seu tempo chegou a falar da imprensa como “A grande prostituta de Viena”, agora provavelmente falaria da “maior prostituta do mundo”. Escrevia Kraus, «…longe de servir de maneira desinteressada os ideais universais de onde se reclama, a imprensa propõe e reserva os seus favores àqueles que têm meios de os pagar e os pagam efetivamente.» (in Jacques Bouveresse, Schmock Ou Le Triomphe Du Journalisme ; La Grande Bataille De Karl Kraus, 2001) Não se trata tanto do fim do ideal, e do domínio do real, mas do triunfo de um falso real, o real construído para consumo obrigatório.
Os media, salvo exceções honrosas, abandonaram a sua principal função de informar, de transmitir conhecimento e ideias, e até de pontos de vista diversos e mesmo opostos e polémicos ou considerados intoleráveis. O debate, a argumentação e contra-argumentação, as ideias por mais benignas ou não devem ser totalmente livres e debatidas. O que temos é apenas uma função, a mais degradante: formatar, manipular, servir de veículo a um determinado tipo de poder político e económico.
O problema sintomático dos média, agrava-se ainda mais em países pequenos e com um certo atraso, como é o caso de Portugal, ainda mais monolítico em termos políticos e da sua pequena, medíocre e obediente elite mediática.
Que diferença existe, mesmo em termos editoriais, entre a RTP, a SIC e a TVI? Ou o Expresso, o Observador, e mesmo o Público ou o JN? O meio é pequeno e o trânsito das pessoas, sempre as mesmas a dizerem as mesmas coisas, entre os diferentes meios, é frequente, constituindo uma espécie de confraria. Temos mesmo que ser muito meticulosos para percebermos alguma diferença.
Escrevo este texto para o Notícias Viriato (NV). O que sucedeu recentemente em relação ao NV demonstra como essa confraria tem a sua coutada que defende de modo intransigente. Já não se trata de pluralidade de informação e opinião, mas de uma versão que é a correta, a boa, e que é única, e a outra, a inaceitável, que tem que ser silenciada e punida por todos os meios e truques. O pensamento único, típico do pior dos totalitarismos, aparece travestido de democracia, de liberdade, mas agora numa formulação execrável: “podes ser livre e democrata, mas se repetires o que queremos que repitas”.
O NV na sua dimensão e crescimento foi uma novidade no panorama português. A prova que se tornou incómodo, foi a barragem de disparates, calúnias e falsificações a que foi sujeito. Como não se vergou ao guião a seguir, não houve malfeitoria, crime, fobia, etc., que não lhe fosse imputado. Da falsidade das acusações pouco interessa, o que conta é o processo, e o acto de amedrontar, denegrir e manchar. A nova ordem, a do “bem” implica uns novos três dês: demonizar, descredibilizar e desqualificar. Tudo o que traz uma visão que não é conforme o poder estabelecido e o que esse poder determina tem que ser destruído de todas as formas.
Estes dados chamam-nos a atenção para a pequenez e atraso do nosso país, que assim é facilmente controlável. A pequenez não se refere à dimensão geográfica. Fazem falta visões efetivamente plurais e divergentes. Só assim há efetivo debate e contraditório, só assim há liberdade de informação, expressão, pensamento e opinião. Ser livre não é repetir a cartilha dos “democratas do bem”, dos “donos da virtude”.
Uma imprensa não estatal, livre e independente não recebe subsídios, pagamentos antecipados por publicidade, não reproduz as agendas do poder nem contribui para processos demonológicos contra os opositores do status quo. Quando a política ajuda a imprensa, a imprensa ajudará a política.
Não vale a pena fingir distinções, é inexistente a fronteira entre os media do sistema, a política e grupos económicos e financeiros. O unanimismo e vinculação de uma visão ideológica única sobre o mundo e o país, portanto totalitária, são o produto final dessas conjugações de interesses.
Temos em Portugal, desde sempre, a obsessão com o ser moderno, europeu e civilizado, ora sem pluralidade nos media, na política e até no ensino não há modernidade de facto. Para se alcançar essas “metas” importa uma verdadeira diversidade, mesmo no plano ideológico, e que se reflita também nos media. O que temos é de facto um sistema, como um pensamento único, com as mesmas orientações políticas e ideológicas. Ver a SIC, a TVI ou a RTP é ver o mesmo, o mesmo sucede com os jornais, além de uma falta de qualidade cada vez mais gritante. O consenso mediático é o mesmo que o político, todos de acordo nos valores e costumes, desde o CDS liberal até ao Bloco, e com algumas variantes sobre economia.
Mais democracia, mais modernidade, mais desenvolvimento só é possível com novos medias verdadeiramente de direita, conservadores, como até liberais e de esquerda, de extrema direita e extrema esquerda com um outro olhar e abordagem sobre a “realidade”, outras visões e propostas, mas que não sejam mais do mesmo, protegidos e subsidiados e fazendo “favores” e alimentado autênticos clãs e grupúsculos de influência. Um genuíno olhar de direita ou de esquerda não significa o desvirtuar da informação, mas a assunção de um outro olhar sobre o real. O que temos já não é sobre o real, mas o fornecimento de uma teoria sobre o real no qual devemos viver e na qual devemos acreditar.
Mas quem investirá na imprensa independente respeitando a sua liberdade e sem medo da máquina de diabolizar deste centro difuso que tem o poder em Portugal há décadas e décadas? Medias de direita como de esquerda teriam de ser corajosos e arrojados, mas sem cair em caricaturas de si próprios. No caso específico da direita, medias de direita não significa missa em latim, recitação e louvor das obras de Salazar e sermões moralistas de manhã, com meia dúzia de loucos a vociferar diatribes em relação ao mundo e a tudo. Uma direita do século XXI sem vergonha de o ser é clara sobre a sua visão acerca da economia, dos valores, da soberania, da imigração, da europa, etc.
O primeiro grande desafio de medias livres, de direita e esquerda, será o da respetiva afirmação e resistência, para que consigam desconstruir a imagem de si próprios que é sempre recebida, não a partir do que são, mas do que o sistema designa que sejam. Por exemplo, o que é direita não é o que a direita diz que é, mas o que o centro do poder designa que ela seja.
João Brás
Professor e Escritor
Professor e Escritor
Fonte: Notícias Viriato
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