Por ocasião do Simpósio de Filosofia dedicado à memória de Mons. Antonio Livi, que se realizou em Veneza no passado dia 30 de Maio, procurei identificar os elementos que se repetem constantemente ao longo da História na obra de engano do Maligno. Nesse meu exame minucioso tinha-me focado na fraude pandémica, mostrando como as razões dadas para justificar medidas coercivas ilegítimas, e não menos ilegítimas limitações das liberdades naturais, eram, na verdade, prophasis, isto é, motivações aparentes destinadas a esconder uma intenção maliciosa e um projecto criminoso. A publicação dos e-mails de Anthony Fauci e a impossibilidade de censurar as cada vez mais numerosas vozes dissidentes em relação à narrativa mainstream confirmaram a minha análise e deixam-nos aguardar uma derrota flagrante dos fautores do Great Reset.
Naquela intervenção concentrei-me, se vos recordais, no facto de que o Concílio Vaticano II foi, de certa forma, um Great Reset para o corpo eclesial, como outros eventos históricos planificados e pensados para revolucionar o corpo social. Mesmo nesse caso, de facto, as desculpas apresentadas para legitimar a reforma litúrgica, o ecumenismo e a parlamentarização da autoridade dos Sagrados Pastores Pastores não se baseavam na boa-fé, mas em enganos e mentiras, para nos fazer crer que o bem certo a que renunciávamos – a Missa apostólica, a unicidade da Igreja para a salvação, a imutabilidade do Magistério e a Autoridade da Hierarquia – poderia ser justificado por um bem maior. O que, como sabemos, não só não aconteceu (nem poderia acontecer), mas, aliás, manifestou-se em toda a sua explosiva valência subversiva: as igrejas estão vazias, os seminários desertos, os conventos abandonados, a autoridade desacreditada e pervertida em tiranias para vantagem dos maus Pastores ou tornada ineficaz para os bons. E sabemos também que o propósito deste reset, desta revolução devastadora, era, desde o início, iníquo e malicioso, embora envolto em nobres intenções para convencer os fiéis e o Clero à obediência.
Em 2007, Bento XVI reconheceu o pleno direito de cidadania à venerável liturgia tridentina, restituindo-lhe aquela legitimidade que, com um abuso, lhe havia sido negada durante cinquenta anos. No seu Motu Proprio Summorum Pontificum, declarou: «Por isso é lícito celebrar o Sacrifício da Missa segundo a edição típica do Missal Romano, promulgada pelo Beato João XXIII em 1962 e nunca ab-rogada, como forma extraordinária da Liturgia da Igreja. [...] Para tal celebração segundo um ou outro Missal, o sacerdote não necessita de qualquer autorização da Sé Apostólica nem do seu Ordinário».
Na realidade, a letra do Motu Proprio e dos documentos de implementação nunca foi plenamente aplicada e os cœtus fidelium que actualmente celebram no rito apostólico continuam a pedir autorização ao seu Bispo, essencialmente aplicando os ditames do Indulto do precedente Motu Proprio Ecclesia Dei, de João Paulo II. A justa honra em que a liturgia tradicional deveria ser realizada foi moderada pela sua equiparação à liturgia da reforma pós-conciliar, tendo aquela sido definida forma extraordinária e esta forma ordinária, como se a Esposa do Cordeiro pudesse ter duas vozes – uma plenamente católica e uma equivocamente ecuménica – com as quais se dirigir ora à Divina Majestade, ora à assembleia dos fiéis. Mas também não há dúvida de que a divulgação da Missa tridentina tenha feito tão bem, alimentando a espiritualidade de milhões de pessoas e aproximando da Fé tantas almas que, na esterilidade do rito reformado, não encontravam incentivo algum nem para a conversão nem ainda menos para o crescimento interior.
No ano passado, com o típico comportamento dos Inovadores, a Santa Sé enviou às Dioceses do Orbe um questionário no qual se pediam informações sobre a aplicação do Motu Proprio de Bento XVI: a própria formulação das questões trazia, mais uma vez, um segundo propósito; e as respostas enviadas a Roma deveriam criar a base de uma aparente legitimidade para conduzir a uma limitação do Motu Proprio, se não mesmo à sua total revogação. Certamente, se o autor do Summorum Pontificum ainda estivesse sentado no Trono, aquele questionário teria permitido ao Pontífice lembrar aos Bispos que nenhum sacerdote deve pedir permissão para celebrar a Missa em rito antigo, nem ser por isso afastado do ministério. Mas a real intenção de quem quis consultar os Ordinários não parece residir na salus animarum, mas no ódio teológico a um rito que exprime com adamantina clareza a Fé imutável da Santa Igreja e que, por isso, é alheia à eclesiologia conciliar, à sua liturgia e à doutrina que essa pressupõe e veicula. Não há nada mais oposto ao chamado magistério do Vaticano II do que a liturgia tridentina: cada oração, cada perícope – como diriam os liturgistas – constitui uma afronta aos ouvidos delicados dos Inovadores, cada cerimónia é uma ofensa aos seus olhos.
Só o tolerar que haja católicos que queiram beber das fontes sagradas desse rito soa-lhes como uma derrota, suportável apenas se for limitada a pequenos grupos de idosos nostálgicos ou de excêntricos estetas. Mas se a forma extraordinária – que o é no sentido comum do termo – se torna a normalidade para milhares de famílias, de jovens, de pessoas comuns e conscientes da sua escolha, torna-se uma pedra de escândalo e deve ser implacavelmente combatida, limitada, abolida; visto que não deve haver oposição à liturgia reformada, nenhuma alternativa à esqualidez dos ritos conciliares, assim como não pode haver voz de dissidência ou refutação argumentada diante da narrativa mainstream do globalismo; ou diante dos efeitos colaterais de uma vacina experimental não se podem adoptar tratamentos eficazes que demonstrariam a sua inutilidade.
Nem nos podemos surpreender: quem não vem de Deus é intolerante a tudo o que recorda, mesmo remotamente, uma época em que a Igreja Católica era governada por Pastores católicos e não por Pastores infiéis que abusam da sua autoridade; uma época em que a Fé era pregada na sua integridade aos povos e não adulterada para agradar ao mundo; uma época em que aqueles que tinham fome e sede de Verdade eram alimentados e saciados por uma liturgia terrena na forma, mas divina na substância. E se tudo o que até ontem era santo e bom, hoje é condenado e feito objecto de escárnio; permitir que permaneça qualquer vestígio dela hoje é inadmissível e constitui uma afronta intolerável. Porque a Missa tridentina toca cordas da alma que o rito montiniano não ousa sequer roçar.
Obviamente, quem manobra atrás dos bastidores vaticanos para eliminar a Missa católica são aqueles que no Motu Proprio vêem comprometida a obra de décadas, ameaçada a posse de tantas almas que se mantêm subjugadas e enfraquecida a tirania sobre o corpo eclesial. Os mesmos sacerdotes e bispos que, como eu, redescobriram aquele tesouro inestimável de fé e espiritualidade – ou que, pela graça de Deus, nunca o abandonaram, apesar da feroz perseguição do período pós-conciliar –, não estão dispostos a abandoná-lo, tendo encontrado nele a alma do seu sacerdócio e o alimento da sua vida sobrenatural. E é inquietante, além de escandaloso, que, diante do bem que a Missa Tridentina traz à Igreja, haja quem queira proibi-la ou limitar a sua celebração por razões ilusórias.
No entanto, se nos colocamos no lugar dos Inovadores, compreendemos como isso é perfeitamente coerente com a sua visão distorcida da Igreja, que não é uma sociedade perfeita hierarquicamente instituída por Deus para a salvação das almas, mas uma sociedade humana na qual uma autoridade corrupta e escravizada à elite favorece e, mais do que isso, orienta as necessidades de vaga espiritualidade da massa, negando o propósito para o qual Nosso Senhor a quis; e em que os bons Pastores são forçados à inércia pelas algemas burocráticas a que são os únicos a obedecer. Este empasse, este beco sem saída jurídico, significa que o abuso da autoridade possa ser imposto aos súbditos justamente em virtude do facto de reconhecerem nela a voz de Cristo, mesmo diante da evidência da maldade intrínseca das ordens dadas, dos motivos que as determinam e dos próprios sujeitos que a exercem. Por outro lado, mesmo na esfera civil, durante a pandemia, muitos obedeceram a normas absurdas e nocivas porque lhes foram impostas por médicos, virologistas e políticos que deveriam ter em mente a saúde e o bem-estar dos cidadãos; e muitos não quiseram acreditar, nem mesmo diante da evidência do projecto criminoso, que estes poderiam desejar positivamente a morte ou a doença de milhões de pessoas. É o que os especialistas em psicologia social chamam de dissonância cognitiva, que induz os indivíduos a refugiarem-se num nicho confortável de irracionalidade, em vez de se reconhecerem como vítimas de um engano colossal e, portanto, devendo reagir virilmente.
Não nos perguntemos, por conseguinte, por que, diante da multiplicação das comunidades ligadas à antiga liturgia, do florescimento de vocações quase exclusivamente no âmbito do Motu Proprio, do aumento da frequência dos Sacramentos e à coerência da vida cristã de quantos o seguem, se queira, infelizmente, espezinhar um direito inalienável e impedir a Missa apostólica: a pergunta está errada e a resposta seria enganosa.
Em vez disso, perguntemo-nos por que motivo hereges conhecidos e fornicadores sem moral devam tolerar que os seus erros e a sua conduta de vida deplorável sejam postos em causa por uma minoria de fiéis e clérigos desprotegidos quando têm o poder de evitá-los. A este ponto entendemos bem que esta aversão não pode deixar de ser explícita precisamente e apenas para acabar com o Motu Proprio, abusando de uma autoridade usurpada e pervertida. Mesmo nos tempos da pseudo-reforma protestante, a tolerância para com alguns usos litúrgicos arraigados no povo foi efêmera, porque aquelas devoções à Virgem Maria, aqueles hinos em latim, aqueles sons de sino na Elevação – que já não era Elevação – deviam, por força das circunstâncias, desaparecer, sendo expressão de uma Fé que os seguidores de Lutero haviam negado. E seria absurdo esperar que pudesse haver uma coexistência pacífica entre Novus e Vetus Ordo, bem como entre a Missa católica e Ceia luterana, dada a incompatibilidade ontológica existente entre si. Olhando mais de perto, a derrota do Vetus, desejada pelos partidários do Novus, é, pelo menos, coerente com os seus princípios, exactamente como deveria ser a derrota do Novus da parte do Vetus. Enganam-se, pois, aqueles que acreditam ser possível unir duas formas opostas de culto católico, em nome de uma pluralidade de expressão litúrgica que é filha da mentalidade conciliar, nem mais nem menos que a hermenêutica da continuidade.
O modus operandi dos Inovadores emerge, mais uma vez, nesta operação contra o Motu Proprio: primeiro, alguns dos mais fanáticos opositores da liturgia tradicional lançam como provocação a revogação do Summorum Pontificum, definindo a antiga Missa como “divisiva”; depois, a Congregação para a Doutrina da Fé pede aos Ordinários que respondam a um questionário, cujas respostas estão praticamente pré-confeccionadas (a carreira do Bispo depende da forma como apoiará o que reportará à Santa Sé, porque do conteúdo do questionário também terá conhecimento a Congregação dos Bispos); por isso, casualmente, durante um encontro à porta fechada com os membros do Episcopado italiano, Bergoglio disse estar preocupado com os seminaristas «que pareciam bons, mas rígidos» e com a difusão da liturgia tradicional, sempre reiterando que a reforma litúrgica conciliar é irreversível; além disso, nomeia Prefeito do Culto Divino um acérrimo inimigo do Vetus Ordo, que constitui um aliado na aplicação de eventuas restrições; finalmente, ficamos a saber que os Cardeais Parolin e Ouellet estão entre os primeiros a querer essa reestruturação do Motu Proprio: isto obviamente leva os Prelados “conservadores” a precipitarem-se em defesa do actual regime de coexistência das duas formas ordinária e extraordinária, dando a Francisco a oportunidade de se mostrar como um prudente moderador das duas correntes opostas e levando “apenas” a uma limitação do Summorum Pontificum ao invés da sua revogação total. Que – como sabemos – era exactamente o que ele almejava desde o início da operação.
Independentemente do resultado final, o deus ex machina desta previsível peça é, e permanece, Bergoglio, pronto a assumir o mérito de um gesto de clemente indulgência para com os conservadores e também para descarregar as responsabilidades de uma aplicação restritiva sobre o novo Prefeito, Mons. Arthur Roche, e sobre os seus sequazes. Assim, no caso de um coro de protestos dos fiéis e de uma reacção descomposta do Prefeito ou de outros Prelados, mais uma vez ocorrerá o confronto entre progressistas e tradicionalistas, tendo, então, óptimos argumentos para afirmar que a coexistência das duas formas do Rito Romano comporta divisões na Igreja e que, por isso, é mais prudente voltar à pax montiniana, isto é, à proibição total da Missa de sempre.
Exorto os meus Irmãos no Episcopado, os Sacerdotes e os leigos, a defenderem arduamente o seu direito à liturgia católica, solenemente sancionada pela Bula Quo primum, de São Pio V; e a defenderem com essa a Santa Igreja e o Papado, ambos expostos ao descrédito e ao ridículo por parte dos próprios Pastores. A questão do Motu Proprio não é minimamente negociável, porque nele é reafirmada a legitimidade de um rito nunca revogado nem revogável. Além disso, ao dano certo que essas arejadas invocações trarão às almas e à certa vantagem que dela derivará para o Diabo e para os seus servos, acrescenta-se a indecente rudeza para com Bento XVI, ainda vivo, por parte de Bergoglio, que deveria saber que a autoridade que o Romano Pontífice exerce sobre a Igreja é vicária e que o poder que tem vem de Nosso Senhor Jesus Cristo, única Cabeça do Corpo Místico: abusar da Autoridade Apostólica e do poder das Santas Chaves para um propósito oposto àquele para o qual foram instituídas pelo Senhor, representa uma inaudita ofensa à Majestade de Deus, uma desonra para a Igreja e uma culpa pela qual terá que responder Àquele de quem é Vigário. E quem rejeita o título de Vigário de Cristo, saiba que, com esse, falha também a legitimidade da sua autoridade.
Não é aceitável que a autoridade suprema da Igreja se permita apagar, numa perturbadora operação de cancel culture em chave religiosa, a herança que recebeu dos seus Pais; nem é admissível considerar fora da Igreja aqueles que não estão dispostos a aceitar a privação da Missa e dos Sacramentos celebrados na forma que forjou quase dois mil anos de Santos. A Igreja não é uma empresa em que o departamento de marketing decide eliminar produtos antigos do catálogo e propor novos, a pedido dos clientes. Já foi doloroso impor à força a revolução litúrgica aos sacerdotes e aos fiéis, em nome da obediência ao Concílio, arrebatando-lhes a própria alma da vida cristã e substituindo-a por um rito que o maçom Bugnini copiou do Book of Common Prayer, de Cranmer. Aquele abuso, parcialmente sanado por Bento XVI com o Motu Proprio, não pode ser, de modo algum, repetido agora na presença de elementos que são todos amplamente a favor da existência da antiga liturgia. Se se realmente quisesse ajudar o povo de Deus nesta crise, deveria ter sido abolida a liturgia reformada, que em cinquenta anos causou mais danos do que os feitos pelo Calvinismo.
Não sabemos se as temidas restrições que a Santa Sé pretende fazer ao Motu Proprio afectarão os sacerdotes diocesanos ou se dirão respeito também aos Institutos, cujos membros celebram exclusivamente o rito antigo. No entanto, temo, como já tive oportunidade de dizer no passado, que será precisamente sobre estes últimos que se desencadeará a acção demolidora dos Inovadores; que talvez possam tolerar os aspectos cerimoniais da liturgia tridentina, mas não aceitam absolutamente a adesão à estrutura doutrinal e eclesiológica que ela implica e que contrasta fortemente com os desvios conciliares que querem impor sem derrogação. Eis por que se deve temer que seja solicitada a esses Institutos uma qualquer forma de submissão à liturgia conciliar, por exemplo, tornando obrigatória a celebração, pelo menos ocasional, do Novus Ordo, como já devem fazer os sacerdotes diocesanos. Desse modo, quem faz uso do Motu Proprio será obrigado não só a uma aceitação implícita da liturgia reformada, mas também a uma aceitação pública do novo rito e da sua mens doutrinal. E quem celebra as duas formas do rito ficará, ipso facto, desacreditado, antes de tudo, na sua coerência, fazendo passar as suas escolhas litúrgicas como um facto puramente estético, diria quase coreográfico, e privando-o de qualquer juízo crítico em relação à Missa montiniana e à mens que lhe dá forma: porque se verá forçado a celebrar aquela missa. Uma operação maliciosa e astuta, esta, em que uma autoridade que abusa do seu poder deslegitima aqueles que se opõem a ela, por um lado concedendo o rito antigo, mas por outro fazendo dele uma questão puramente estética e forçando-o a um insidioso biritualismo e a uma ainda mais insidiosa adesão a duas abordagens doutrinárias opostas e contrastantes. Mas como se pode pedir a um sacerdote que celebre ora um rito venerável e sagrado em que encontra perfeita coerência entre doutrina, cerimónia e vida, e ora um rito falsificado que pisca o olho aos hereges e cala vilmente o que o outro proclama com orgulho?
Rezemos, pois: rezemos para que a Divina Majestade, a quem prestamos culto perfeito celebrando o venerável rito apostólico, se digne a iluminar os Sagrados Pastores para que desistam do seu propósito e, pelo contrário, incrementem a Missa tridentina para o bem da Santa Igreja e para a glória da Santíssima Trindade. Invoquemos os Santos Padroeiros da Missa – São Gregório Magno, São Pio V e São Pio X in primis – e todos os Santos que, ao longo dos séculos, celebraram o Santo Sacrifício na forma que nos foi transmitida para que a protegêssemos fielmente. Possa a sua intercessão junto do trono de Deus impetrar-nos a conservação da Missa de sempre, graças à qual nos santificamos, fortalecemos nas virtudes e resistimos aos ataques do Maligno. E se alguma vez os pecados dos homens da Igreja merecerem uma punição tão severa como profetizado por Daniel, preparemo-nos para descer às catacumbas, oferecendo esta provação pela conversão dos Pastores.
† Carlo Maria Viganò, Arcebispo
Fonte: Dies Iræ