quinta-feira, 28 de julho de 2011

Duas rainhas em Paris

Imperdível esta deliciosa crónica de Novais Teixeira originalmente publicada n'O Primeiro de Janeiro, a 25 de Outubro de 1953

Não sei bem se esta soberana familiaridade com que Paris recebe e trata as Majestades estrangeiras não oculta um despeito: o de não ter também o seu Rei e a sua Rainha. Porque em Paris há de tudo — ela o sabe bem! — menos o comando da realeza.
Pelo fim trágico de Luís XVI se depreende que Paris prefere o sr. Auriol no Palácio do Eliseu a qualquer titular de sangue real. Mas se os reis fossem apenas honrarias e efeitos decorativos, os parisienses gostariam de ter no Palácio de Versalhes um Orléans legítimo misturado com as fontes luminosas. Faz parte esse gosto pelas figuras reais deste adorável «provincianismo» da capital, de que todos se apercebem menos os parisienses, porque um parisiense é demasiado actor da grande cena para compreender bem Paris.
Por aqui anda o Conde de Paris, pretendente ao trono da França, sumido na massa anónima da capital. Só lhe falta o cesto das compras e o pão debaixo do braço para ser, na iconografia doméstica do seu quartier, um parisiense autêntico. Pudesse, porém, a falta de ceptro não implicar na falta de europeis reais, como deliraria o povo de Paris com esse impossível majestático na pessoa do seu Conde!
Duas rainhas honram hoje com a sua presença as ruas da capital: a rainha Juliana da Holanda e a rainha Frederica da Grécia. A rainha Juliana é uma holandesa típica, isto é, uma francesa da província, plasticamente considerada; a rainha Frederica, uma perfeita parisiense, isto é, cintura de vespa, 58 centímetros, segundo registo das fitas métricas dos costureiros de Paris. Juliana veio à terra de São Luís para espairecer; Frederica para se vestir. Uma foi vista na Rue Rivoli, colada às vitrinas da bijouterie turística, bon marché; outra na Avenue Montaigne, rondando a casa de Christian Dior.
Os holandeses têm em alto conceito a sua Rainha. Menos autoritária que a rainha Guilhermina, é todavia Senhora de mais autoridade. Seus conselhos são sábios; seus ouvidos, atentos aos negócios do Estado. Não é apenas respeito hierárquico o que lhe mostram os seus Ministros, mas o que se tem por uma dama que chegou com condições intrínsecas à Suprema Magistratura do país. No jardim dos seus sentimentos mais íntimos, os holandeses cuidam do afecto pela sua Rainha com a mesma amorosa solicitude com que tratam das suas papoulas de mais alto preço. O sorriso franco e simples da rainha Juliana seduz também os parisienses.
Sua Majestade jantou um dia destes, de incognito, em uma rôtisserie do Boulevard de Clichy, que é o boulevard classe média por excelência; hors-d'oeuvres variados, pilaf de lagosta, queijo de cabra e café do Brasil. Acompanhava-a o príncipe Bernhard de Lippe, seu marido. Depois botou conversa com um casal desconhecido da mesa do lado, ao estilo de Paris, e foram os quatro deambular por Pigalle, perdidos na multidão. Há quem visse Juliana diante dum pim-pam-pum com jeito de pegar na bola de trapo. O príncipe Bernhard foi no dia seguinte a Rambouillet caçar faisão com o presidente Auriol. A Rainha preferiu Chantilly e as preciosidades da pinacoteca do seu castelo.
Uma Rainha compenetrada com o seu povo está automaticamente compenetrada com todos os povos do mundo. O respeito por uma realeza popular não se detém nos domínios da sua jurisdição. Paris põe à disposição da rainha da Holanda os seus pimpam- puns e a sua familiaridade. Difícil conquista esta, a da familiaridade dum povo tão… comunista como o de Paris! Eis uma conquista que ainda não fez o sr. Maurice Thorez. Experimentem acercarem-se do secretário-geral do Partido Comunista Francês! O seu ceptro exige mais distâncias que o dos Reis!… As Majestades vermelhas estão mais expostas aos acidentes cardíacos.

Novais Teixeira, O Primeiro de Janeiro, Porto, 25 de Outubro de 1953, pp. 1, 2

Agradecimentos a Vasco Rosa

João Távora

Fonte: Real Associação de Lisboa

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