segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Vicente, mártir


Todos os lisboetas conhecem a história de São Vicente, mártir, padroeiro do Patriarcado de Lisboa. Este diácono era natural de Aragão e foi martirizado em Valência. Mais tarde, segundo uma piedosa lenda representada na heráldica olisiponense, as suas relíquias deram à costa da capital portuguesa, num barco tripulado por corvos.

Se esse é o São Vicente mártir, padroeiro principal do Patriarcado de Lisboa, há pelo menos mais um mártir homónimo: Vincent Lambert, um enfermeiro francês, de 42 anos, que foi agora, depois de uma renhida batalha judicial, morto em França, ao abrigo da legislação que, nesse país, liberalizou o suicídio assistido e despenalizou a eutanásia. Também em Portugal não falta quem se proponha levar a cabo uma tal reforma legislativa, que representaria um colossal retrocesso em termos civilizacionais.

Geralmente, quando se pretende a legalização de comportamentos que ofendem a consciência cristã de países de tradição católica, recorre-se à manipulação da opinião pública, através da exploração sentimental de casos extremos, o que em geral provoca uma atitude mais tolerante em relação a situações objectivamente criminosas. Admitido esse comportamento delitivo em relação a casos extraordinários, rapidamente se generaliza, até se tornar trivial. Foi o que aconteceu, no nosso país, com o aborto, inicialmente permitido apenas nos casos de violação ou de malformação do feto, mas que hoje se pratica livre e impunemente, mesmo que a criança seja saudável e tenha sido concebida voluntariamente. Na Holanda e na Bélgica, em que a eutanásia é legal há mais tempo, também só era, de início, autorizada em casos muito excepcionais. Hoje, porém, já se pratica em larga escala, mesmo em relação a doentes que não são terminais, nem desejam morrer.

Um desses casos extremos foi, no país vizinho, o de Ramón Sampedro, um tetraplégico que dizia ser, de forma dramática, uma cabeça sem corpo. Dada a sua forçosa imobilidade, Ramón queria morrer, mas não tinha hipótese de se suicidar e, se alguém o fizesse, incorreria na pena prevista, na lei espanhola, para o delito de homicídio, porque, para o efeito, era irrelevante o consentimento da vítima. Assim sendo, não foi difícil à comunicação social apresentar como cruel a lei que impedia Ramón de morrer, quer por si mesmo, quer por outrem. Claro que a opinião pública, confrontada com estas situações, tende a reagir em termos emocionais, tolerando a legalização da eutanásia e a despenalização do suicídio assistido e, por isso, Sampedro, que foi argumento do filme “Mar adentro”, acabou por ser morto a 12 de Janeiro de 1998, sem que Ramona Maneiro, que lhe deu o cianeto que o matou, fosse responsabilizada pelo homicídio.

Num programa da televisão espanhola de prós e contras em relação à eutanásia, foi preciso, para além do caso do dito Ramón, ouvir alguém que, em situação análoga, tivesse uma opinião contrária. Para este efeito, o Padre Luís de Moya, da prelatura do Opus Dei, tetraplégico em consequência de um grave acidente de viação, ofereceu-se para dar o seu testemunho.

Há já vários anos totalmente imobilizado, o Padre Luís continua a exercer o ministério sacerdotal como capelão universitário: confessa e atende alunos e professores, concelebra a Eucaristia, dá palestras e até tem um blogue muito activo, pois consegue escrever com a língua, graças a um computador especialmente preparado para pessoas com a sua deficiência. Como é natural, precisa de quem o levante, lave, vista, dê de comer e transporte, embora saiba manobrar sozinho uma cadeira de rodas adaptada à sua muito escassa mobilidade.

Quando um jornalista perguntou ao Padre Luís se queria viver, obviamente respondeu que sim, com a alegria própria de um cristão. Acrescentou também que a sua deficiência, que é definitiva, não representava para ele nenhum drama, nem trauma. Ante a incredulidade do entrevistador, explicou que ele era como um milionário a quem se tinham extraviado duas moedas, que eram a sua mobilidade, de facto perdida para sempre, mas insignificante se comparada com a imensa fortuna que é a fé cristã.

Para quem não tem mais horizonte do que o da sua vida terrena, talvez a saúde seja de facto essencial e, a sua ausência, sobretudo se paralisante e incurável, razão suficiente para desistir de viver. Mas, para quem tem uma perspectiva cristã da existência, até a mais dolorosa e incapacitante deficiência tem sentido, à luz do mistério da paixão e morte de Cristo na Cruz. A doença, mesmo terminal, não só nunca é indigna, como é compatível com a alegria pascal dos filhos de Deus.

P. GONÇALO PORTOCARRERO DE ALMADA

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