É dura a tarefa de dar voz à serenidade em tempos de histeria – pior, quando o delírio parece aspirar à dignidade de ciência para, aproveitando o prestígio das instituições, converter-se em narrativa única, dominadora e totalitária. Mas de modo algum podemos render-lhes o campo.
Foi com grande surpresa que na edição de 2 de Março deste jornal fui confrontado com um texto intitulado O ódio ao presente, da autoria do meu prezado conterrâneo professor Elísio Macamo, reflexão motivada pela minha participação no “Prós & Contras” do passado dia 24, assim como da leitura de textos avulsos por mim assinados na página Facebook da Nova Portugalidade (NP), associação cívica e cultural da qual sou colaborador.
Lamentando não existir na nossa língua sentença equivalente daquela de Rivarol que até há anos encimava o pórtico das faculdades de humanidades – “Ce qui n'est pas clair n'est pas français” –, não posso deixar de lamentar no texto do professor Macamo a negação da clareza, concisão, objectividade, coerência e coesão requeridas por qualquer tentame ensaístico. Abstraindo expressões menos cordatas, e até argumentos que visam paralisar o antagonista, categorizando-o como inimigo da democracia e da espécie humana – para não referir o “ódio”, suprema fórmula infantil como inquisitorial que autoriza dar morte cívica a um homem, privá-lo de liberdade de expressão e criminalizar-lhe o pensamento –, o texto do professor Macamo revela três gravíssimas falhas: Macamo parece não ter seguido o debate; se o seguiu, parece não ter compreendido o que ali eu disse; Macamo quis fazer psicanálise ao meu discurso, recorrendo aos seus preconceitos e fantasmas para me endossar um metatexto que é negação do que ali tentei explicar a uma assembleia profundamente hostil a qualquer forma de expressão racional e ilustrada de argumentos. Aquela sala, dominada por uma miríade de associações de ativistas, não estava disposta a discutir, mas a repetir frases feitas e comboios de adjectivos. Nem faltou, caído do éter londrino via Skype, um professor com discurso autoritário para me lançar uma fatwa, tentativa gorada pelo facto de o mesmo se ter estatelado estrepitosamente, dando até provas de imperícia no mais chão conhecimento das cronologias.
Como raramente sucumbo à tentação do pólo irracional e teimosamente me atenho à racionalidade discursiva; como prescindo de psicologizações que reduzem a complexidade a combustões emocionais, obriga-me a circunstância a prestar os seguintes esclarecimentos ao meu compatrício professor Elísio Macamo:
Falso debate
Discreteia o professor Macamo sobre o meu suposto entusiasmo pela “afirmação dos mais fortes sobre os mais fracos” e pela “moral de desigualdade” que cultivaria. Ora, se há evidência em todos os meus escritos é precisamente a denúncia de doutrinas e práticas que justificam a segregação [dos fracos e dos pobres] por invocação da “espontaneidade”, do “struggle for life” ou da “lei da natureza”, porquanto o homem possuiu uma segunda natureza cultural e as comunidades humanas não são termiteiras. O professor Macamo diz – e diz muito bem – que não sou racista, pois que a Portugalidade é expressão do universalismo português entendido como fraternidade de povos destribalizados constituídos em nação de nações, como há meses lembrou o professor Alexandre Franco de Sá em colóquio realizado pela Nova Portugalidade na Casa de Goa. A “racialização”, sim, é obsessão e bordão tão caro aos comunitaristas inclinados ao factor rácico tomado como sobredeterminante na arrumação antropológica e da vida social.
O que insisti dizer nas poucas intervenções em que me foi possível concluir um raciocínio foi, precisamente, o de que o debate sobre o “racismo” é um falso debate. Ser-se negro e mulher ou branco e homem, nada quer dizer. A origem racial, assim como o género, não são categorias sociais. Não há conivência económica, social e política alguma entre a Dra. Joacine Katar Moreira (JKM) e uma mulher portuguesa negra originária de um bairro do subúrbio da outra margem do Tejo que se levanta às cinco da madrugada, apanha o cacilheiro às 5h30, desembarca no Terreiro do Paço às 6h, aguarda meia hora na fila para o autocarro e chega ao emprego às 7h para limpar o gabinete de investigadora em Ciências Sociais da Dra. JKM, mulher com formação superior ocupada no terciário. A questão do “racismo” está, pois, mal colocada. É tudo uma questão de classe e posição social, pelo que a análise adulta deve remeter para as condições sociológicas objectivas de status, rendimento e propriedade. No fundo, tais bandeiras só podem concitar entusiasmo a uma certa burguesia empregada no terciário. Discussões sobre raça e género impedem que se encare a realidade social e política de frente, pelo que são alienação, animação cultural, mas também comunitarização vitimizadora que muitas vezes permite manter negócio político. É uma conspiração anti-democrática que destrói o espaço da Cidade. Enquanto estiverem os “activistas” siderados por tais temas, não se fala na pobreza, na hemorragia da emigração da nossa juventude, na falta de soberania do país, no desmantelamento da nossa indústria e na vergonha de termos a população activa a servir copos a turistas ou em call-centers a vender serviços insignificantes.
A tradição colonialista é recente
No debate, lembrei que historicamente houve um racismo doutrinário branco, o qual está mais relacionado com a tradição intelectual das esquerdas (as Luzes, a Enciclopédia, o Evolucionismo, o Progresso) e que chegou tardiamente a Portugal através de Oliveira Martins, mas que encontrou expressão política através do general Dantas Baracho, deputado por Angola no fim da monarquia liberal e, depois, republicano. Afinal, a mudança da Secretaria de Estado da Marinha e do Ultramar para Ministério das Colónias (1911), a Lei do Indígena (1917) e até o Acto Colonial de 1930 foram inspirados pelo modelo centralista, vertical, eurocêntrico e progressista da mission civilisatrice do colonialismo francês da III República de Jules Ferry. Tudo isso foi breve, pelo que a poderemos balizar entre finais do século XIX e o início da década de 1960. Onde antes houvera “cidadania antiga portuguesa” e um império policêntrico – em África mandavam elites negras e mestiças, pois brancos não os havia até finais do século XIX – passou a haver quadrícula colonial, corpo administrativo e funcionários metropolitanos que se sobrepuseram àquelas elites locais, por sinal as mesmas que hoje, de Cabo Verde a Angola e São Tomé, são viveiro para recrutamento de políticos, generais, diplomatas e administradores. Sim, durante séculos Portugal foi uma nação africana.
O terrorismo cultural
O que devia, sim, incomodar o meu prezado conterrâneo professor Elísio Macamo é a destruição do espírito académico. Vivemos numa época em que a Universidade, a maior glória da civilização medieval europeia, está entregue à glossolalia de “novos saberes” que despedaçam séculos de tradição racional ocidental, em que se decreta o que deve ser e não deve ser lido – obras de Voltaire, Goethe, Rousseau, Schopenhauer, Dickens e Mark Twain retiradas das estantes das bibliotecas por conterem matéria considerada racista, etnocêntrica, xenófoba, sexista, misógina e “patriótica” – e até fontes clássicas por excelência da literatura ocidental expurgadas do currículo dos cursos de História da Literatura em Oxford. A defesa do património civilizacional europeu coloca-se como prioritária ante os novos bárbaros. Perante o vírus da histerização que lembra a caça às bruxas e a matança dos gatos de Paris, precisa-se com urgência de políticas firmes que impeçam a transformação da Universidade em Nave dos Loucos.
Por essa posição de firmeza em favor da racionalidade, do rigor e de um patriotismo inclusivo e aberto, que a portugueses de todas as cores e credos possa agregar numa narrativa comum, continuaremos eu e a NP a desenvolver todos os esforços. É dura a tarefa de dar voz à serenidade em tempos de histeria – pior, quando o delírio parece aspirar à dignidade de ciência para, aproveitando o prestígio das instituições, converter-se em narrativa única, dominadora e totalitária. Mas de modo algum podemos render-lhes o campo.
Miguel Castelo-Branco
Fonte: Público
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