quarta-feira, 15 de julho de 2020

O «vírus chinês» e as razões de Trump e Bolsonaro

A defesa da saúde física e mental da espécie humana a longo prazo beneficiará da manutenção da designação deste coronavírus como «vírus chinês», tal como o presidente norte-americano tem insistido.

Num ápice, o mundo está a subverter o vírus chinês de patologia física (de génese biológica) em patologia mental (resultante da propagação de ideias e crenças distópicas). O lado mental da pandemia sobressai a cada dia dada a evidência crescente da ciência propriamente dita não ter tido tempo de se afirmar face a um vírus desconhecido até 2019. A toque do fortíssimo impacto mundial das tecnologias de informação e comunicação, a ideologia e a política foram remetidas para o âmago do fenómeno pandémico, as maiores condicionantes dos processos mentais colectivos.

No que concerne às consequências da propagação no tempo e no espaço dimensão biológica, a pandemia não acrescenta novidades em relação ao que tem acontecido ao longo dos séculos. Novidade é passarmos a considerar, como nunca no passado, a dimensão mental das pandemias, uma das heranças mais nefastas do século com a qual é tempo de romper.

Pouco ou nada aprenderemos com o vírus chinês se, enquanto sociedades e civilizações, não investirmos desde já nos pressupostos morais (reflectidos no dilema entre atribuir primazia à saúde colectiva ou à sobrevivência socioeconómica colectiva cujo desfecho prático ninguém honestamente conhece) e nos consequentes pressupostos intelectuais (reflectidos no dever de autonomizar o lugar da ciência do lugar da manipulação política da ciência) associados à pandemia como condição da busca da serenidade mental colectiva, mais não seja porque as atitudes e os comportamentos, dos individuais aos colectivos, desempenham papel crucial nos momentos em que os riscos são inevitáveis.

Como ninguém tem certezas da direcção correta para além das suas certezas ideológicas e políticas e, por isso, a tolerância à diversidade dada a diversidade de pessoas e espaços revela-se, no imediato, a regra de ouro. É já muito evidente que será apenas dentro da cabeça de cada um de nós que subsistirão os maiores riscos pandémicos a médio e longo prazos. Nesse sentido, se o debate público marginalizar os pressupostos referidos, as sociedades e o mundo podem ir ultrapassando as pandemias do momento, mas dificilmente conseguirão romper com surtos de retornos cíclicos. É esse salto qualitativo que temos de exigir uns aos outros como condição de uma nova vitória civilizacional.

O mundo não teria desembocado num estado de desorientação mental sem precedentes, em primeiro lugar, se a opacidade e demais disfuncionalidades das ditaduras e regimes actuais de génese comunista tivessem sido histórica e socialmente exorcizadas, o que nunca aconteceu. Em segundo lugar, se a autorresponsabilidade individual e sobretudo colectiva – de cada comunidade, povo ou país – tivesse sido imposta enquanto inevitável princípio moral universal.

O actual vírus chinês na sua dimensão mais significativa, a mental colectiva, mais não é do que uma nova estirpe do já secular vírus mental comunista. Foi o último que historicamente transformou a autorresponsabilidade colectiva num fardo reservado apenas reservado ao Ocidente, o que desequilibrou no último século a ordem moral do mundo. Não é possível conjugar o ideal moral de responsabilidade com o ideal de vitimização.

Em vez da China, se a actual pandemia tivesse sido espoletada nos Estados Unidos da América, Alemanha, Japão, Israel, Austrália ou Brasil de Bolsonaro a autorresponsabilidade e responsabilização imposta por terceiros sobressaíriam, sem hesitações e desde o início, e bem, como condicionantes-chave da gestão da crise. Esse é justamente o antídoto mental mais poderoso contra o desastroso descontrolo mundial a que assistimos, uma fonte perigosa de todo o tipo de agressividades porque desregula o alvo da culpa (sem aspas) e permite todo o tipo de manipulações de vitimização.

O que fica óbvio da actual pandemia é a subsistência de uma parte do mundo não-ocidental que mantém regimes políticos e tradições culturais que vão atentando contra a condição humana, por vezes com danos que assumem dimensões gigantescas (ambientais, biológicas, humanitárias), e que simplesmente não partilha pressupostos morais humanamente aceitáveis. O que fica também óbvio é que isso não tem a ver com pobreza ou riqueza, apenas com a condição humana. A China passou de uma a outra sem nada mudar a sua orientação moral colectiva. É isso que ameaça o mundo.

Não é por mero acaso que os danos causados aos respectivos povos com potencial de contaminar os povos vizinhos, e o mundo no seu conjunto, se têm manifestado a partir da China, no passado soviético de Chernobyl (1986), também no presente da Venezuela ou, num futuro previsível, de África. Por aí adiante. A sobreposição desse mapeamento no espaço e no tempo com os territórios de maior impacto da herança mental comunista é demasiada óbvia.

Claro que também houve graves responsabilidades fora desse contexto, como as norte-americanas com as bombas atómicas de Hiroxima e Nagasáqui (1945). Todavia, esses episódios e os demais dos regimes ocidentais têm sido exorcizados pela autorresponsabilidade de matriz judaico-cristã e filosófica e, precisamente por isso, não se repetiram.

Vivendo hoje uma ameaça cuja propagação no tempo e no espaço o senso comum pode mapear sem dificuldades, torna-se mais fácil compreender, por analogia, a propagação do vírus mental comunista do qual deriva o actual vírus chinês.

Mapear no espaço e tempo a pandemia-mãe

vírus mental comunista transitou da gestação, a fase das teorias intelectuais (correspondentes ao significado que hoje atribuímos ao mercado de Wuhan), para fenómeno social e histórico na URSS, nascida em 1922 após a revolução russa de 1917. Logo de imediato gerou vacinas cavalares na vizinhança ocidental europeia, os historicamente posteriores fascismo (1922) e nazismo (1933), pelo que os estragos causados mantiveram-se circunscritos ao opaco mundo soviético. Foi apenas após a segunda guerra mundial (1939-1945) que a epidemia se transformou em pandemia, o início da propagação acelerada do vírus pelo mundo no contexto bipolar da guerra fria (1945-1991), e num momento em que a Europa perdeu as vacinas que a iam matando da cura, o fascismo e o nazismo.

Com o apoio dos Estados Unidos da América, a Europa Ocidental no entanto conseguiu gerar, logo a partir de 1945, novos anticorpos assentes na liberdade individual e na estabilidade das instituições democráticas e, por isso, bem mais justos e autossustentáveis, mas também permeáveis à ameaça do vírus mental comunista. Todavia, existia a referência clara à fonte externa da ameaça, a então URSS, o que permitia ao Ocidente controlar a circulação interna de um vírus que, nessa fase, não era percepcionado como ameaçador por se limitar a circular em certos meios restritos, entre académicos e partidos políticos sem grande expressão social (alemães, franceses, italianos e, de algum modo, ingleses e norte-americanos).

Nesse mesmo ciclo histórico da guerra fria a situação do então terceiro mundo era muito distinta. Este não se revelou capaz de gerar anticorpos contra a ameaça externa representada pelo vírus mental soviético (territórios que à época representaram os papéis actuais, para já, da Itália e Espanha). O então terceiro mundo acabou martirizado por estar muito mais próximo de tradições rurais ancestrais e, por isso, bem mais vulnerável a apelos à submissão do indivíduo a poderes autoritários colectivistas como condição de modernização e prosperidade.

Todavia, esse caminho apenas substituía o poder comunitário autoritário ancestral pelo poder colectivista autoritário e revolucionário comunista, o último em tudo estranho às tradições dos povos e, por isso, mental, social e economicamente desestruturante. Daí ter-se instalado no terceiro mundo um vírus mental gerador de pandemias nunca contidas cujos efeitos não pararam de se manifestar nas décadas pós-coloniais. As vulnerabilidades geradas estão hoje agravadas restando esperar que a virulência do actual vírus chinês, como tem acontecido com outros, não se abata sobre elas.

A dominação colonial europeia efectiva iniciada em finais do século XIX, em África, sendo também de origem externa, no entanto tinha encaminhado os povos colonizados em sentido inverso. Isso porque os colonizadores ocidentais, mal ou bem, iam libertando o indivíduo enquanto tal da sua submissão a pertenças comunitárias ou colectivas ancestrais. Como sempre, a liberdade nasce desse passo original, mesmo quando se rotulam os indivíduos de assimilados (os primeiros negros a adquirir hábitos europeus, hoje quase todos). Se retirarmos os óculos ideológicos, essa herança não gerou patologias mentais colectivas e será ela, no futuro, a bóia de salvação mental do terceiro mundo.

Pelo contrário, o vírus soviético, depois agregado ao vírus maoísta (1949), propagaram-se fora do Ocidente que nem fogo em palha seca para predispor esses povos contra a dominação colonial europeia e influência Ocidental em geral, instigação justa, porém oferecendo-lhes caminhos de regressão moral e intelectual em torno do ideal de vitimização colectiva.

Nada de semelhante havia ocorrido nos processos de independência pré-soviéticos iniciados com a independência pioneira dos Estados Unidos da América, no século XVIII, depois estendidos à generalidade das Américas no século XIX. Essas nacionalidades foram fundadas numa época de sanidade mental colectiva porque os novos povos nasceram comprometidos com a sua autorresponsabilidade. Ao romperem com o pai colonial na era pré-soviética, as nacionalidades americanas sentiam-se moralmente compelidas a comprovarem a si mesmas serem capazes de se autorregular e prosperar melhor do que na anterior condição menor de filhos colonizados, e sem desculpabilizações externas.

A força dessas primeiras independências resultou de não existir, à época, o vírus da vitimização mental colectiva enquanto ideal moral. Este apenas foi gerado mais tarde, na Rússia/URSS desde 1917 e fortemente propagado pelo mundo após 1945, como referido.

Daí em diante, nenhuma nova independência, entre asiáticas e africanas, escapou à pandemia mental comunista. Mesmo os povos da América Central e do Sul, independentes desde o século XIX, passaram a reinterpretar o sentido do seu destino colectivo à moda soviética. O resto da história conhecemos pelo rol de má governação, corrupção, pobreza, violência criminal ou armada (ou ambas), persistência de ditaduras, entre outras misérias.

Por seu lado, os focos de contaminação no Ocidente vindos do exterior apenas se tornaram ameaçadores a partir de 1991 com o fim da URSS e da guerra fria. De 1991 em diante, o vírus mental comunista perdeu a tutela soviética para sobreviver em rédea solta nas mãos de franco-atiradores progressistas, uma nova ecologia que provocou a disseminação e mutação do vírus. A Europa de Leste, que acabava de se libertar da opressão soviética, gerou de imediato anticorpos contra a nova estirpe enquanto os restantes afundaram-se na crise do Ocidente, hoje na curva exponencial, para recorrer a uma expressão em voga.

À medida que se avançou para o século XXI, a adoentada mente colectiva do Ocidente foi gerando novos anticorpos, em geral ineficazes. Aconteceu na Áustria, França, Holanda, Itália, entre outros territórios. A mudança efectiva veio de fora da Europa, do organismo ocidental mais resistente, da sociedade norte-americana que apostou, desde 2017, no papel voluntário de anticorpo e estendeu a sua aura, entre outros, aos brasileiros. Mesmo que a vitória do Brexit tenha ocorrido meses antes, talvez os britânicos não tivessem resistido sem a força do renovado contexto internacional.

Se a curto prazo não existe alternativa ao combate pragmático e directo ou adaptação ao vírus chinês (de Giuseppe Conte, na Itália, a Jair Bolsonaro, no Brasil, os dois podem estar certos ou errados, o tempo dirá), o facto é que a defesa da saúde física e mental da espécie humana a longo prazo beneficiará da manutenção dessa designação, tal como o presidente norte-americano tem insistido. Ela ajudará a encontrar a melhor porta de saída da actual pandemia que exige a renovação da orientação moral e intelectual do mundo que tem de nascer da ruptura com a patológica herança soviética de 1917 ou, numa perspectiva doméstica, apostada na refiliação do Ocidente à sua própria tradição civilizacional.

Gabriel Mithá Ribeiro

Fonte: Observador

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