terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Desvalorizar o que incomoda

 


O que pensar de um Presidente da República que na quinta-feira, dia 28 de Janeiro de 2021, fala ao país com um ar grave para fazer mais um alerta aos Portugueses sobre a complicada situação pandémica, e no domingo seguinte, dia 31, é entrevistado num programa de humor (“Isto é gozar com quem trabalha”, de Ricardo Araújo Pereira, SIC) para contar fait-divers? Entre o preocupado e o entertainer, lá tivemos Marcelo Rebelo de Sousa no registo habitual. Provavelmente, deve pensar que é preciso continuar a dar circo ao povo para não viver obcecado com os efeitos devastadores da crise sanitária. Pelo menos, é a conclusão que se retira quando o Chefe de Estado aceita participar num programa humorístico sem grande propósito no momento. Não se conhece exemplo de homólogo que tenha feito o mesmo no seu país.

Quando os Portugueses estão verdadeiramente preocupados com o seu destino, seja na saúde ou como sobreviver à rápida degradação económica e social, tivemos Marcelo a falar de temas requentados. Mais uma vez, as relações com António Costa, para dizer que, “como cada um vive em sua casa”, não se zangam e, por isso, fiquem descansados que não tem qualquer plano para fazer cair o Governo. Também não faltou o estafado assunto Cabrita, devido à morte do cidadão ucraniano. No fim da conversa com o humorista, fez questão de garantir aos potenciais invejosos que o seu cargo, tal como o ocupado por Costa, não é assim tão bom. É caso, pois, para perguntar: o que é que isso interessava a um país assustado, naquela altura, com a impressionante subida do número de mortos e infectados por Covid-19?

Desde que começaram a partilhar o poder, a dupla Marcelo-Costa adoptou uma atitude de laxismo que levou a esta sensação de impunidade que percorre o País. Qualquer situação que lhes seja incómoda ou desagradável pelas suas repercussões nefastas é de imediato desvalorizada em uníssono.

O nosso jornalismo alinhado com o poder socialista colabora facilmente na efectivação desse discurso relativizador do que parece inconveniente, para que desapareça num ápice do debate público. Podemos, assim, ler frequentemente nos títulos dos jornais ou nos rodapés dos noticiários das televisões “Marcelo desvaloriza…”, ou “Costa menoriza…”, ou “Governo relativiza…”, ou “ministro desdramatiza…”


Enganar os cidadãos


Pode haver muita gente que já ache este tipo de reacção tão vulgar que não lhe dê importância ou, então, nem seja capaz de avaliar o quanto vai contribuindo para o apodrecimento da vida do país. Mas à médica Patrícia Pacheco, directora de Infecciologia do Hospital Amadora-Sintra, não passam despercebidas as tentativas do poder político em relativizar o que não lhe interessa. Numa entrevista ao Observador, de 30-1-2021, ao acusar o Governo de “mentir” aos cidadãos e fazer uma gestão “errática” da pandemia, disse mais: “A falta de transparência e de honestidade perturba-me, acho que é o pior que um líder pode ter e é o pior que esta liderança do Ministério da Saúde tem – não ser transparente, desvalorizar sistematicamente os problemas que existem, em vez de os encarar, em vez de dizer de uma forma muito clara que nós temos limites e não os devíamos ter ultrapassado.”

Esta médica, que está na linha da frente e, por isso, lida com uma realidade brutal – na entrevista confessou a sua “frustração e indignação” –, é vítima, como muitos Portugueses noutras áreas de actividade, da constante desvalorização que o poder instalado faz das dificuldades que eles encontram por toda a parte. Daí a percepção de que se vive num país bloqueado, em que apenas conta a palavra do poder. Quem tem diariamente de enfrentar as dificuldades sabe que é assim. O discurso oficial, a um ritmo quase intoxicante, é sempre enganador, pois faz crer o que depois não acontece. Quando surgem inesperadamente crises, como esta da pandemia, a acumulação de situações que não foram melhoradas ou resolvidas no tempo certo causa danos desastrosos. É o que temos visto.


A mentira em vez da verdade


Recentemente, os média noticiaram que, no conjunto do ano 2020, o PIB registou uma queda de 7,6% em volume, contrastando com o crescimento de 2,2% em 2019. É a maior recessão registada em Democracia. Segundo o DN, de 2-1-2021, “desapareceu o equivalente aos subsídios europeus a fundo perdido que o Governo conta receber”. O que disse o ministro da Economia? Muito simples: o resultado não é tão mau como se esperava. Isso valeu-lhe imediatamente um elogio da imprensa alinhada, como se fosse um grande feito. Como a previsão do Governo para o ano passado era de uma queda de 8,5%, no jogo das expectativas encontrou-se uma forma de desvalorizar o que deve muito preocupar os Portugueses. A queda do PIB é muito maior do que no pior ano da Troika, mas o que importa agora é normalizar o que corre mal.

Negar evidências para ganhar vantagens políticas, quando a realidade vivida pelos cidadãos no dia-a-dia é completamente diferente do discurso oficial, só pode levar a que se olhe para os políticos como uns trapaceiros que não se importam de mentir para conservar o poder. A psicóloga Maria Jesús Alaya Reyes disse um dia que “os políticos estão treinados para mentir sem que se note demasiado” (DN, 1-4-2017). A verdade em política está a ser substituída pela mentira para ludibriar os cidadãos sobre o que se promete e não se concretiza, sobre o que corre mal e não se quer assumir responsabilidades, sobre o que importa manipular para produzir um efeito enganador. Obviamente, sem a colaboração da informação alinhada, seria muito mais complicado fazer passar a mentira. Quantas vezes Costa falhou no compromisso assumido no início do exercício das actuais funções quando declarou que “palavra dada é palavra honrada”? E o que dizer quando Marcelo, no início da pandemia, afirmou que “ninguém vai mentir a ninguém”? Como alguém dizia, habilidade em política é dizer uma coisa e fazer outra.


Francisco Menezes

Fonte: Inconveniente


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