terça-feira, 24 de agosto de 2021

UMA DENÚNCIA OPORTUNA DO AUTORITARISMO NUMA QUESTÃO 'TÃO SENSÍVEL'

«A cada frase do editorial do PÚBLICO a justificar a “despublicação” (extraordinária puerilidade a desta palavra!) do artigo de opinião do médico Pedro Girão sobre a vacinação das crianças e dos jovens contra o Covid tornava-se-me evidente que o emergentismo é o novo caminho da servidão: tudo o que é válido, como a condenação da censura, é posto de parte desde que se invoque a excepcionalidade do combate que se está a travar.

Não está em causa se concordo ou não concordo com as opiniões expressas pelo médico Pedro Girão. (Aliás, o próprio facto de antes de se começar uma frase se ter de fazer uma espécie de declaração de apoio às políticas oficiais, por mais erráticas que elas sejam, para não se ser rotulado negacionista, conspiracionista ou qualquer outro “ista” é bem sintomático da degradação da nossa liberdade e da alienação do mais elementar bom senso.) O que sim está em causa são as questões levantadas por Pedro Girão: quais as consequências da alteração dos prazos de segurança na aprovação das vacinas contra o Covid? Faz sentido vacinar crianças para, dessa forma, se protegerem os adultos e não tanto as crianças?

Até há algum tempo defendíamos o direito a divergir nas respostas. A declarar que estávamos de acordo com o autor do texto ou que, pelo contrário, discordávamos dele vivamente. Agora isso acabou.

O PÚBLICO, essa espécie de barómetro linguístico do politicamente correcto, verbaliza esta transformação ideológica que a pandemia propiciou: “Numa questão tão sensível como a da pandemia, recusamos em absoluto promover juízos que tendem a negar a importância ou o relativo consenso científico em torno das vacinas.”

É aqui precisamente, nesta invocação da “questão tão sensível” para impor um autoritarismo que oficialmente se execra, que está o cerne do emergentismo de que o PÚBLICO, como boa parte da comunicação social, se tornou órgão de divulgação e propaganda: as sociedades do bem-estar, vulgo democracias burguesas, não estiveram disponíveis para revoluções colectivistas. E de facto não foi pela via revolucionária clássica que o controlo estatal nos foi imposto, mas sim através de um combate para nos salvar da doença, para nos proteger do vírus, para nos manter saudáveis.

Sempre soubemos que não podíamos viver num mundo com zero terroristas, zero SIDA ou zero criminalidade pois o preço a pagar por tais “zero” era demasiado elevado e sobretudo incompatível com os nossos valores e forma de viver. Mas isso era o que se sabia antes do grande reset estatista das nossas vidas em que o combate ao Covid se transformou. Perante o Covid, o objectivo não foi defender o nosso modo de vida, como aconteceu aquando do aparecimento da SIDA ou do ataque às Torres Gémeas, mas sim suspender esse modo de vida.

Sociedades envelhecidas, domesticadas pelo constante controlo fiscal, desprovidas de bom senso, idiotizadas por activismos minoritários, mostraram-se particularmente vulneráveis quando postas perante uma ameaça sanitária. Onde as velhas ideologias falharam triunfou o emergentismo: o dia a dia dos povos está transformado num conjunto de absurdos justificado pelo combate ao Covid. O controlo e o poder dos estados sobre os cidadãos aumentou exponencialmente. Não menos importante, não são pedidas responsabilidades, tudo fica para depois. Por exemplo, continuamos à espera de explicações para a desvalorização do vírus efectuada pelas autoridades europeias no início de 2020 ou para a conduta errática da OMS.

O emergentismo tornou-se a zona de conforto de boa parte dos nossos governantes: Biden fez a América cair em Cabul, mas, em Novembro, na Cimeira do Clima, lá estará a querer salvar nada menos que o planeta. E com ele os líderes dos diferentes países da NATO que não só não investem na sua defesa (a dependência face aos EUA é quase total) como entretêm o vazio de funções a produzir textos inúteis como Gender balance and diversity in NATO ou NATO Climate Change and Security Action. Não se consegue manter uma força de dois mil homens no Afeganistão, mas salvar o planeta, esse sim, é um objectivo realista, entendendo-se por salvar o planeta tudo e o seu contrário, sobretudo se, tal como aconteceu com o combate ao Covid, o tudo e o seu contrário se traduzirem não em aperfeiçoarmos o nosso modo de vida mas sim em suspendê-lo outra vez.

Não por acaso, catástrofes pelas quais até há pouco se pediam responsabilidades aos governos – como os incêndios ou os mortos nas inundações – passaram a ser apresentadas como uma consequência das alterações climáticas, logo fatalidades que só desaparecerão quando no Ocidente, e só no Ocidente, nos tivermos libertado do pecado das emissões, do automóvel, dos aviões, dos bifes, do banho diário…

Os incêndios florestais, tal como as cheias, podem ser influenciados e agravados pelas alterações climáticas. Mas não foram as alterações climáticas as responsáveis pelo recente falhanço do sistema de alertas meteorológicos na Alemanha ou pelo descontrolo das autoridades portuguesas aquando dos incêndios florestais de 2017.

As grandes burocracias que nos governam têm no emergentismo a sua verdade conveniente: não são eles que falham, são os povos que não cumprem.
Os próximos anos serão marcados pelo emergentismo porque os próximos anos serão marcados por políticos de um mundo em decadência: os generais argentinos invadiam as Malvinas. Os nossos dirigentes vão salvar-nos do vírus; depois vão salvar o planeta…

Se alguém tiver perguntas sobre a razoabilidade das decisões, o acerto das medidas ou o impacto dos programas aprovados para salvar o planeta ou salvar o que vier a seguir, não duvido que muitos jornais, rádios e televisões “despublicarão” os artigos em que elas sejam formuladas e, parafraseando o PÚBLICO, explicarão que não se deve quebrar o relativo consenso científico em torno duma questão tão sensível.

Ps. Por estes dias muito se tem falado das imagens dos helicópteros americanos nas retiradas de Cabul e Saigão. A estas imagens símbolo do que não esperávamos ver junto uma outra: a da tripulação do Boeing 747 francês que a 1 de Fevereiro de 1979 levou o Ayatollah Khomeini de regresso ao Irão. Enquanto o Xá e a sua família não conseguiam que algum dos seus antigos aliados ocidentais os acolhessem pelo menos pelo tempo suficiente para que Reza Pahlavi morresse em paz, pois o linfoma de que sofria tinha-se agravado dramaticamente, o Ayatollah Khomeini era levado de França para o Irão, rodeado de um fascínio entre o subserviente e o festivo, simbolizado pelo gesto do assistente de bordo francês que ajuda Khomeini a descer as escadas do avião.»

Helena Matos 

Fonte: Observador

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