domingo, 2 de setembro de 2018

O mártir toxicodependente

Decididamente, a história de São Marcos Kitien Siang não é comum. De certo modo, este toxicodependente chinês, que a Igreja venera como mártir, recorda São Dimas, o paradoxal ‘bom ladrão’. Se um ladrão, por ser ladrão, não pode ser bom, nem muito menos santo; um toxicodependente, por sê-lo, estaria também impossibilitado de aceder ao ideal da perfeição cristã. Contudo, a providência divina conhece caminhos que a imaginação humana não seria capaz de descobrir.

De antiga família cristã, convertida em meados do século XVII, e irmão de um sacerdote, Marcos Kitien Siang era um fiel leigo, casado e médico de profissão. Como membro activo da comunidade cristã de Ye-Tcang-Tem, “era universalmente estimado e amado pelos seus excelentes dotes e pela sua generosidade. Muito fiel às práticas religiosas, queria que todos o fossem também na sua família”, como se escreve numa sua biografia.

Mas não há bela sem senão. No caso de São Marcos, o seu calcanhar de Aquiles ou, em terminologia paulina, o seu aguilhão (2Cor 12, 7), era o ópio. Lutava, é certo, contra esta tendência, mas foram tantas as vezes que contraiu o vício e se tornou toxicodependente. Depois de muitas quedas sem uma efectiva mudança de vida, foi-lhe negada a absolvição sacramental, que não lhe poderia ter sido dada sem escândalo dos fiéis. Ante esta dura contrariedade, Marcos Kitien Siang não se afastou da Igreja, não perdeu a fé, nem a esperança, que formulou contudo em termos muito originais:

- Só tenho uma hipótese de salvação: o martírio. Sem essa graça, não conseguirei chegar ao paraíso!

Não foi em vão a sua esperança – como nunca é, quando fundada em Cristo – mas só se viria a realizar trinta anos depois.

A 7 de Julho de 1900, duas centenas de boxers entraram na sua aldeia, prenderam-no, bem como uma dúzia de fiéis, que foram apresentados ao mandarim. Muitos pediam a graça da amnistia para o bondoso médico, que a autoridade local estava disposta a conceder, na condição de que renunciasse à fé cristã. Marcos recusou sempre a infâmia da apostasia:

- O Cristianismo é tão antigo quanto a dinastia Ming. Prefiro a morte à apostasia. Não posso negar a minha fé.

Também não acedeu ao convite de uma apostasia simulada, que igualmente poderia ter salvo a sua vida. Sabia que a sua fé não podia ser vivida apenas no seu coração, ou na intimidade da sua família, pois dela devia dar também testemunho público: não fazê-lo seria negar Jesus Cristo. Preferiu perder a vida para salvar a fé, em vez de perder a fé para salvar a vida.

Como Inácio de Antioquia, cujas ânsias de estar com Deus levaram a pedir aos cristãos de Roma que não impedissem, nem atrasassem a sua execução, também Marcos Kitien Siang desejava o martírio, não só para estar com Cristo, “o que é incomparavelmente melhor” (Fil 1, 23), como ensina São Paulo, mas também para assim obter a definitiva libertação da toxicodependência, que tanto o atormentava. Que bom padroeiro para quantos, infelizmente, padecem do mesmo mal!

A caminho do lugar onde São Marcos foi martirizado, um dos seus netos perguntou-lhe:

- Avô, para onde nos levam?

São Marcos Kitien Siang respondeu-lhe com a alegria antecipada de uma felicidade intensamente desejada e já iminente:

- Meu filho, voltamos para casa!

P. GONÇALO PORTOCARRERO DE ALMADA

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