O Augusto Cid deixou-nos na passada semana. Para muitos portugueses Augusto Cid foi um dos principais, senão o principal, cartoonista em Portugal depois do 25 de Abril. A objectividade e o humor dos seus desenhos, publicados em diferentes jornais como a Vida Mundial, o Diabo, o Independente, o Sol, assim como na TVI, eram inconfundíveis e tinham o mérito de nos fazer reflectir sobre o conceito do bem e do mal, e sobre os comportamentos humanos, seja quando revelavam mérito e deviam ser elogiados, seja quando eram reprováveis e deviam ser censurados. Este percurso talentoso como cartoonista iniciou-se nos EUA, onde frequentou o curso dos liceus, tendo depois passado a entregar os seus desenhos sobre política americana, a um pequeno jornal chamado “Laguna Beach”. Regressado a Portugal, e utilizando por regra os seus desenhos, publicou mais de trinta livros, entre 1975 e 2016.
Mas Augusto Cid notabilizou-se também como escultor, tanto de grandes como de pequenas obras, sempre marcadas por um pormenor e simbolismo cativante. Exemplos de esculturas suas encontra-se uma homenagem às vítimas do 11 de Setembro de 2001, colocada no cruzamento das avenidas de Roma com a dos Estados Unidos da América, em Lisboa, ou a estátua a Nuno Álvares Pereira, colocada na avenida Torre de Belém, em Lisboa, que foi inaugurada pelo Senhor Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, em 6 de Novembro de 2016. Devido à sua notável obra como cartoonista e escultor, foi homenageado como comendador da Ordem do Infante D. Henrique, em 1994.
Essa foi a sua obra pública. Eu tive contudo a sorte de ser seu amigo, e dessa forma conhecer melhor o seu carácter e os valores que defendia. Conheci Augusto Cid em 1983, quando pediu para falar comigo. Sabia que, desde 1980, se dedicava a investigar o que verdadeiramente havia sucedido no desastre de Camarate, onde morreram Francisco Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa, o meu irmão António Patrício Gouveia e mais quatro acompanhantes. Disse-me que as chamadas “investigações oficiais” não estavam a ser sérias nem rigorosas, tendo-me apresentado vários exemplos dessa realidade. Referiu-me também que se não fossem os familiares das vítimas a interessarem-se por este assunto, e a desenvolverem a sua própria investigação, existia um risco real de ficar para a história uma descrição falsa do que havia sucedido. Aceitei passar a participar nas reuniões de trabalho do grupo de pessoas que se dedicavam a esta investigação, e que incluíam Dinah Alhandra, Alexandre Bettencourt, José Ribeiro e Castro, José Luís Ramos, Marcelo Rebelo de Sousa, Jorge Xavier de Brito, Rosário Carneiro, Manuela Vaz da Silva Pires e mais tarde, Ricardo Sá Fernandes. Foi realizado um trabalho profundo e rigoroso de investigação, que se prolongou de 1981 a 2015, data em que terminou a X Comissão Parlamentar de Inquérito sobre Camarate.
Durante esses mais de 32 anos, tive oportunidade de apreciar a determinação e a honestidade de Augusto Cid nesta luta pela descoberta da verdade. Logo em 1982 recebeu uma proposta, dada por um director de informação da RTP, para deixar as investigações sobre Camarate, e passar a trabalhar em Paris. Nessa proposta de trabalho foi-lhe também entregue um cheque, tendo-lhe sido dito que o podia depositar na sua conta bancária, depois de o preencher com o número de zeros que entendesse. Chegado a Paris, constatou que o âmbito do trabalho que lhe era oferecido era inexistente, e que o único objectivo desse convite era que desistisse de investigar Camarate. Decidiu então regressar a Lisboa, tendo também recusado o referido cheque. Tinha assim rejeitado a possibilidade de se tornar rico, a troco de deixar de seguir os seus princípios.
Tendo recebido, logo em 1981, um convite de Vera Lagoa para trabalhar no Jornal “O Diabo”, passou a utilizar esse jornal para realizar e divulgar as suas investigações sobre Camarate, o que muito incomodou os responsáveis pela forma deturpada como estavam a ser conduzidas as investigações da Polícia Judiciária. Foi um meio importante de que dispôs, pois de forma clara e persistente, foi demonstrando porquê as chamadas investigações oficiais não tinham qualquer credibilidade, pretendendo apenas classificar esse desastre como um acidente. Realizou contudo essas investigações de forma profunda e rigorosa, de modo a poder falar, com autoridade, sobre o que havia sucedido. Como exemplo desse estudo rigoroso deslocou-se, por sua conta, aos EUA, apenas para adquirir os melhores livros e estudos sobre acidentes na descolagem de pequenas aeronaves. Tornou-se assim num conhecedor deste assunto.
Não se amedrontou também perante a Polícia Judiciária que, desde 1980, defendia e pretendia divulgar a teoria de que Camarate havia sido um simples acidente, porque alguém havia roubado a gasolina contida na asa esquerda do avião Cessna. Com efeito, teve que se submeter a interrogatórios da Polícia Judiciária que pretendiam, de forma intimidatória, que Augusto Cid aceitasse a tese do acidente sobre Camarate. Chegaram a referir que corria a risco de ser preso pela forma como estava a realizar as suas investigações. Augusto Cid soube contudo responder tranquilamente, com base no estudo rigoroso que havia realizado, o que impediu a Polícia Judiciária de encontrar incoerências no seu testemunho. Não foi uma experiência fácil, mas o seu carácter e integridade permitiram não só que respondesse de forma coerente a esses interrogatórios, como a prosseguir, nos anos seguintes, o seu trabalho de apuramento da verdade.
Em 1986, a Comissão Parlamentar de Inquérito sobre Camarate, recebeu uma carta da NTSB – National Transportation Safety Board, que é a principal instituição norte-americana na investigação de acidentes aéreos, enviada pela embaixada dos EUA em Lisboa. Referia essa carta que o avião Cessna havia caído por ter excesso de peso, dando por encerrada a investigação deste caso, sem mais explicações. Augusto Cid considerou que esta carta era suspeita e não se afigurava correcta, pelo que decide ir, em Outubro de 1986, à sede do NTSB, em Washington. Aí mostrou a um seu directorcópia da suposta carta do NTSB, ao que o seu interlocutor referiu que essa carta não era verdadeira e que ao constatar esse facto de tão grande gravidade, tinha que dar por concluída a reunião. Augusto Cid ficou então a saber que alguém com responsabilidade ligado aos EUA queria transmitir a mensagem de que Camarate tinha sido um acidente, utilizando o nome da NTSB. Esta circunstância nunca teria sido descoberta sem o empenho e a iniciativa de Augusto Cid.
Estes são apenas alguns exemplos da persistência e dedicação de Augusto Cid sobre a investigação realizada acerca das causas da queda do avião em Camarate. Sem Augusto Cid este desastre teria, para sempre, sido descrito como um mero acidente, e os portugueses teriam vivido com uma mentira relativamente à morte do seu Primeiro-Ministro e Ministro da Defesa Nacional. Sacrificou a profundamente a sua vida profissional e financeira para conseguir divulgar a verdade, como sucedeu nomeadamente com a SIC, com o Jornal Expresso, e com todas as publicações do grupo Impresa, onde deixou de poder trabalhar devido ao conflito que mantinha com Francisco Pinto Balsemão relativamente a Camarate. E adoptou este comportamento determinado devido à sua luta pela verdade, mas também pela admiração que mantinha particularmente por uma das vítimas: Francisco Sá Carneiro. Não conheço muitas pessoas que prefiram ser prejudicadas em vez de cederem nos seus princípios. Mas se hoje os portugueses sabem que Francisco Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa, António Patrício Gouveia e demais acompanhantes morreram devido a um atentado, após os trabalhos de dez Comissões Parlamentares de Inquérito, devem-no a Augusto Cid.
Augusto Cid era uma pessoa integra, de carácter e determinada, mas sempre tranquila e afável com as pessoas com quem lidava. Mas dedicava também uma grande importância e atenção à sua família, tendo, conjuntamente com a sua mulher, conseguido tornar feliz as suas três filhas e cinco netas.
Deixou-nos na passada semana, mas permanecerá para sempre, entre os que o conheceram, o seu exemplo de honestidade intelectual e de coragem na luta pelos seus ideias. Obrigado, Augusto Cid.
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