D. Carlos de Bragança nasceu em Lisboa, a 28 de Novembro de 1863, e já como presuntivo herdeiro do trono, por ser o primogénito do rei D. Luís I. Foi baptizado na Igreja de S. Domingos de Benfica a 19 de Outubro de 1863 e reconhecido como herdeiro do trono pelas Cortes Gerais a 11 de Fevereiro de 1864.
Como Príncipe Real, recebeu uma educação exigente e completa, que incluía o estudo das humanidades, de línguas estrangeiras e a prática de actividades físicas, demonstrando, desde cedo, clara inclinação para as artes e as ciências. Teve como mestres algumas das principais figuras do pensamento e cultura da época, e como aio o jurisconsulto e político Martens Ferrão.
No início da sua vida adulta, D. Carlos empreendeu uma prolongada viagem de estudo pela Europa, onde alargou horizontes e estabeleceu importantes contactos e sólidas amizades, base que lhe permitiu executar, durante o seu reinado, uma politica diplomática com estratégia clara com benefícios para o reino.
Em 1886, casou-se com a princesa D. Amélia de Orleans, filha dos condes de Paris. Os então duques de Bragança, foram viver para o palácio de Belém – enquanto solteiro, D. Carlos vivia com os reis seus pais no Palácio da Ajuda – onde fomentaram uma pequena corte, aberta a discussões culturais e políticas. D. Carlos era na altura muito próximo do grupo dos Vencidos da Vida, onde pontificavam nomes como Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, Carlos Lobo de Ávila, ou Bernardo Pindela, o futuro conde de Arnoso.
O príncipe partilhava muitos dos gostos e preocupações deste grupo que, a nível político, defendia o saneamento das contas públicas, as preocupações sociais, e a moralização da vida pública como prioridades. Para tal, seria necessária uma maior intervenção do rei na política nacional, isto, claro, no respeito pelo enquadramento que a Carta Constitucional definia para o chefe de Estado (alguns políticos e pensadores iam até mais longe, advogando uma reforma da Carta Constitucional).
O rei D. Luís I morreu em Cascais em Outubro de 1889 e D. Carlos sucedeu-lhe então no trono. Tinha a idade de 26 anos. Passados três meses, o novo rei teve de enfrentar a crise que adveio do chamado Ultimatum britânico, resultado de um conflito de interesses pela posse de territórios em África Esta questão arrastava-se desde a Conferência de Berlim (1884) que, reunida para tratar das questões coloniais em África, determinou o princípio da ocupação efectiva dos territórios como factor determinante para a reclamação de soberania sobre os mesmos.
Este incidente, devidamente empolado e distorcido pelos que contestavam o regime, originou uma crise política grave. Os partidos Regenerador e Progressista, que formavam o que hoje chamaríamos “arco governativo”, revelaram grandes dificuldades para negociar um tratado com a Inglaterra que permitisse salvar as aspirações coloniais portuguesas. A isto juntou-se a crise financeira, que começava a tornar-se asfixiante, muito resultante dos empréstimos contraídos para financiar os investimentos e obras públicas executadas no reinado anterior.
Para fazer face aos problemas financeiros e à grave crise originada pelo Ultimatum, e esgotadas por então as soluções oferecidas pelos partidos “rotativos” (O partido regenerador perdera o seu líder incontestado, Fontes Pereira de Melo, e encontrava-se numa crise de identidade, a braços com a liderança formal de António de Serpa Pimentel, e a disputa efectiva pelo poder entre Hintze Ribeiro e Lopo Vaz de Sampaio e Melo), D. Carlos optou pela formação de governos extra partidários, como os do General João Crisóstomo e, sobretudo, o governo de orientação progressista de José Dias Ferreira, que integrou de início Oliveira Martins na pasta das Finanças. Foram estes governos que, por entre altos e baixos, conduziram o País à estabilização desejada, e à imprescindível normalização das relações com a Inglaterra.
Os primeiros anos de reinado não alteraram a orientação política de D. Carlos. Ele era um homem liberal (entenda-se aqui liberal como tolerante e aberto), mas mantinha as suas preocupações sociais. Estava bem consciente do seu papel de Rei e da necessidade de intervir quando necessário, e dentro das suas atribuições constitucionais, procurando que da sua participação resultasse uma mais valia para o País.
Entende-se então porque D. Carlos chamou a si importantes responsabilidades na execução da Política Externa portuguesa. Valendo-se de forma positiva das suas relações de amizade (o príncipe de Gales, futuro Eduardo VII, era um dos seus grandes amigos), e do reconhecimento internacional das suas capacidades, D. Carlos foi o primeiro Chefe de Estado português a utilizar regularmente as visitas de Estado como instrumento de política diplomática. Nesta área, a sua estratégia baseou-se nos seguintes pontos fundamentais: relações profundas com a Inglaterra e o Brasil; aproximação às outras potências: França, Espanha e Alemanha.
A acção diplomática do Rei, baseada numa estratégia sem oscilações, salvou Portugal de complicadas situações financeiras (foi o prestígio pessoal do monarca que permitiu a renegociação de alguns empréstimos feitos no exterior); da partilha pelas potências do território português em África (em 1898, Alemanha e Inglaterra assinaram um tratado secreto para partilha dos territórios portugueses, na prática anulado pela declaração luso-britânica de Windsor, em 1899); e, já no final do seu reinado, procurou posicionar Portugal numa linha de relativa segurança face aos dois blocos antagónicos que então se desenhavam (Rússia, Inglaterra e França por um lado, frente aos Impérios Alemão e Austro-húngaro).
Esta acção diplomática conheceu o período áureo durante os anos de 1903/05, com a visita ao País dos reis Eduardo VII de Inglaterra e Afonso XIII de Espanha; do kaiser Guilherme II, da Alemanha e do presidente Loubet, da França. D. Carlos tinha projectado uma visita ao Brasil para Abril de 1908, à qual atribuía grande significado, pela sua dimensão atlântica e pelo passado comum dos dois países. Infelizmente, o regicídio impediu-o de atravessar o Atlântico, e de se juntar aos brasileiros e muitos portugueses que lá viviam, numa altura em que se comemorava o centenário da abertura dos portos do Brasil à navegação internacional.
A nível interno, o ano de 1893 marcou nova tentativa de D. Carlos para recuperar o rotativismo herdado do reinado anterior. O partido progressista estava sólido, unido pela liderança incontestada de José Luciano de Castro, e os regeneradores encontraram em Hintze Ribeiro o seu líder natural.
Entre 1893 e 1906, o país foi governado alternadamente por estes dois partidos. Primeiro pelos regeneradores de Hintze Ribeiro, com João Franco como ministro do Reino (1893/97), depois pelos regeneradores de José Luciano de Castro (1897-1900); novamente por Hintze Ribeiro (1900/04), e por José Luciano de Castro (1904/06).
Durante este período, Portugal consolidara a sua presença em África, graças à acção de uma geração de oficiais corajosos (Mouzinho de Albuquerque, Caldas Xavier, Paiva Couceiro) e de políticos eficazes (caso do comissário régio António Ennes).
Pese estes sucessos, a situação política viria a alterar-se profundamente, a partir de 1901, evoluindo para a desagregação do sistema rotativo. Em 1901, João Franco, que mantinha com Hintze Ribeiro uma luta antiga pela liderança do seu partido, abandonou os regeneradores, formando depois um novo agrupamento, o regenerador liberal. Em 1905, foi a vez de José Maria de Alpoim abandonar o partido progressista, que considerava pequeno demais para as suas ambições, e criar os dissidentes progressistas, grupo que viria a desempenhar papel decisivo na contestação ao último governo de D. Carlos. O partido republicano, inexpressivo no início do século, aproveitaria a divisão entre os monárquicos para se fortalecer: ao combativo Afonso Costa juntou-se Bernardino Machado (antigo ministro regenerador), e o notável tribuno e demagogo António José de Almeida.
Compreender o que se passou na primavera de 1906 é a chave para se perceber o período subsequente. Nessa altura, o Rei D. Carlos pressentiu que a nova situação política, resultante da atomização dos partidos do regime e do crescimento republicano, só poderia ser invertida recorrendo à estratégia usada no início do seu reinado: um governo forte, com apoio régio, que governasse o tempo suficiente para permitir a recomposição do leque partidário.
O Rei sabia que o País precisava de partidos sólidos, com figuras credíveis, que se apresentassem como alternativa de governação. Foi isso que procurou fazer. Note-se que a Carta Constitucional permitia-lhe seguir esta via, que aliás já fora empreendida, e com sucesso, em ocasiões anteriores. Na época, o governo resultava de nomeação régia. Depois da tomada de posse, o ministério preparava as eleições gerais de deputados, que suportariam nas cortes as suas decisões. Tal como veio a acontecer durante a I República, o voto não era um Direito Universal, mas sim restrito, isto tal como a decisão de escolha de um novo presidente do Ministério e do seu governo. Um julgamento destas práticas à luz dos actuais conceitos de democracia torna-se anacrónico e não permite compreender as decisões tomadas.
Também não foi intenção do Rei atacar a existência ou as liberdades do partido republicano. Pelo contrário, foi este que ultrapassou muitas vezes a fronteira do legal e tolerável. Claro que D. Carlos pretendia combater o crescendo republicano mas apenas contrapondo a este a estabilidade da monarquia e alternativas políticas válidas.
Para executar a sua estratégia, o Rei chamou em Maio de 1906 o conselheiro João Franco, um homem enérgico, frontal, um liberal com preocupações sociais que acreditava que a figura do Chefe de Estado deveria ser mais conhecida respeitada. Saneamento das contas públicas, respeito pela figura do Chefe do Estado, políticas sociais, reformas administrativas: um programa de governo que recuperava ideias vindas do início do reinado de D. Carlos e que João Franco procurava então executar. O pensamento do Rei mantinha-se pois coerente.
Mas sem uma maioria sólida e sem implantação nacional do partido que o sustentava (o regenerador liberal), o governo de João Franco necessitou do apoio dos progressistas nas cortes. Em Maio de 1907, João Franco apercebeu-se que não poderia contar com a continuação do apoio progressista. Pediu então ao Rei a dissolução do Parlamento, ficando as novas eleições adiadas para data a anunciar. D. Carlos, que sentia que nem regeneradores nem progressistas estavam preparados para regressar ao poder, concedeu-lhe o que este pretendia.
Desde essa data, progressistas e regeneradores, uniram-se no ataque ao governo e ao Chefe de Estado. E não por acharem que se vivia tutelado por um ministério que cortava as liberdades, ou por estarem preocupados por as cortes estarem encerradas (ambos os partidos rotativos tinham pedido ao Rei, para si, e por várias vezes, a dissolução parlamentar), mas sim por constatarem a perda da sua hegemonia. Regeneradores e progressistas já não representavam as únicas alternativas de poder.
Tais desentendimentos foram sabiamente aproveitados pelo Partido Republicano, que tinha nas acções de rua a sua mais eficaz arma de propaganda. O Partido Republicano chamara a si o título de defensor das classes desfavorecidas e das políticas sociais. Tal como os partidos do regime, também os republicanos se sentiram ameaçados numa área que consideravam seu monopólio: o partido regenerador liberal de João Franco centrava igualmente parte do seu programa nas questões sociais e na moralização da vida pública. A partir da constatação da ameaça que para eles representavam os regeneradores liberais, iniciaram uma campanha nas ruas contra o governo, contra o Rei, e contra as “ameaças à liberdade”. O governo respondeu com força policial à contestação nas ruas, indo ao ponto de mandar fechar alguns jornais mais exaltados, que chegavam a apelar veladamente ao regicídio. Estas medidas eram excepcionais e transitórias num regime que fazia da tolerância a sua imagem de marca. Não se tratava de fazer delas prática corrente, nem isso ocorria a João Franco, e muito menos a D. Carlos. É curioso assinalar que, já em República, o partido democrático, na prática o único partido que contava no regime e o sucessor do PRP, teve várias ocasiões para demonstrar a sua fraca consideração pela liberdade de expressão e pelas classes sociais mais desfavorecidas, questões que em 1907 tanto acarinhava.
A contestação subiu de tom no decorrer do ano de 1907, ajudada por alguma precipitação e inabilidade do governo em lidar com alguns temas, como os chamados “adiantamentos à Casa Real”. Apesar da agitação nas ruas, e da contestação na imprensa, aspectos que nada tinham de novo no Portugal do regime liberal, nada faria prever que o reinado de D. Carlos acabasse em tragédia. As eleições gerais estavam marcadas para a Primavera de 1908, e era convicção do Rei que os tempos mais agitados tinham passado, sobretudo depois de desmantelada a conjura de 28 de Janeiro de 1908, liderada por dissidentes progressistas e republicanos, e que pretendia afastar pela força o presidente do Ministério.
A apresentação do governo de João Franco como um antecessor de regimes autoritários dos anos 20 e 30 não é verdadeira. Não será demais repetir que a situação vivida entre 1907/08 (governação com o parlamento encerrado) era transitória e tinha antecedentes (o partido regenerador governara sem o parlamento entre 1894/95). Não fazia parte de um programa político de cariz autoritário, nem os seus protagonistas o eram: D. Carlos era um liberal. Fora educado como tal e essa era a tradição dos seus avós e antecessores no trono. A leitura da sua correspondência e o conhecimento dos seus actos comprovam esta ideia.
A actuação do governo procurou manter a ordem e não tolerou abusos e ataques injustificáveis, feitos sobre o manto protector da liberdade de expressão. À luz da prática política, dos valores e mentalidade da época. É sobre este prisma que a História deve ser julgada, os actos do rei D. Carlos e do governo de João Franco representam a última tentativa de regeneração do regime monárquico constitucional.
A 1 de Fevereiro de 1908, um grupo de revolucionários , incentivado por alguns dissidentes progressistas e republicanos radicais, e suportado na Carbonária, resolveu de forma violenta, assassinar o rei e D. Luiz Filipe, o príncipe herdeiro. Tal é incompreensível e injustificável, também à luz da época, por mais certos que julgassem estar das suas razões.
A História acabou por ajustar D. Carlos a ideias feitas, tornando-o incompreendido e mal conhecido. O que é pena, pois deixou de fazer justiça a um homem preparado, íntegro e capaz, que teve uma estratégia e a procurou executar. D. Carlos foi um grande Rei constitucional e, sobretudo, um grande português.
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