sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Homilia na Missa de sufrágio por El-Rei D. Carlos I e pelo Príncipe Real

Ser Rei é ser o primeiro na honra mas, sobretudo, o primeiro no serviço. Mais do que titular de privilégios e regalias, o monarca está, ao longo de toda a sua existência, preso aos pesados grilhões dos mais penosos deveres. Por isso, o Príncipe Real não foi educado para se passear nos salões, como um cortesão ou um boémio, mas para ser o primeiro vassalo de El-Rei e o seu mais destemido e sacrificado soldado, na contínua disponibilidade para o serviço da pátria. (…) Não estranha, portanto, que o seu último gesto, que por sinal lhe custou a vida, fosse um derradeiro acto de nobreza e de serviço. Com efeito, depois de traiçoeiramente assassinado El-Rei D. Carlos, com dois tiros disparados à sua retaguarda, o Príncipe Real, que estava sentado à frente do monarca, levantou-se para responder ao vil ataque em que já perecera o seu Pai e o seu Rei. Foi então que ficou, ele também, na mira do regicida que, com um novo tiro, atingiu mortalmente o Senhor D. Luís Filipe, que veio a falecer pouco depois.


APRENDER A SERVIR
1. Introdução. «Jesus disse-lhes: ‘Um profeta só é desprezado na sua terra, entre os seus parentes e em sua casa’»[1].

O desconsolo desta observação de Nosso Senhor, quando de passagem por Nazaré, bem podia reflectir o sentimento de estupefacção e de revoltada tristeza que necessariamente nos invade quando evocamos o hediondo crime em que pereceram Sua Majestade Fidelíssima El-Rei D. Carlos I e Sua Alteza Real Dom Luís Filipe, Príncipe Real, no dia primeiro de Fevereiro de mil novecentos e oito.

Com efeito, também as vítimas do regicídio foram desprezadas na sua terra e, de algum modo, entre os seus parentes e em sua casa, porque a casa do monarca é o seu país e, o seu povo, a sua família alargada. Ao tombarem pela Pátria, El-Rei e o Príncipe sentiram porventura aquele mesmo desprezo de que se queixa Jesus Cristo, tanto mais injusto quanto procedente dos seus súbditos, daqueles mesmo de quem seria de esperar uma atitude de gratidão ou, pelo menos, de respeito pelo seu exemplar serviço à nação[2].

O pecado do Rei David que, ao recensear a população, duvidou da providencial protecção divina, foi expiado pelo seu povo, tendo perecido, por esse motivo, setenta mil homens, desde Dan até Bersabé[3]. De modo análogo, o sangue divino do Filho de David, segundo a sua linhagem humana[4], a todos resgatou da culpa original dos nossos primeiros pais, como já vaticinara o seu régio antepassado: «a vossa mão caia sobre mim e a minha família»[5]. Foi também para remir a nação que foi derramado, no Terreiro do Paço, o sangue real de El-Rei D. Carlos I e do Príncipe D. Luís Filipe.

Se mais de um século decorrido sobre esta nefasta efeméride nos reunimos em solene assembleia eucarística nesta Igreja de São Vicente de Fora, junto ao Panteão Real, onde repousam os corpos de El-Rei D. Carlos, do Príncipe e de outros membros da Família Real, é não apenas para sufragar as suas almas, mas também para agradecer a bênção do seu martírio e desagravar a nossa memória colectiva da culpa de que foram inocentes vítimas. Por isso, com o salmista, juntos rezámos: «Perdoai Senhor, a culpa do meu pecado»[6].

A História escreve-se com os grandes feitos dos nossos santos e heróis, mas também com as sombras dos pecados e traições dos nossos compatriotas. Se justamente nos orgulhamos de pertencer à estirpe de um Egas Moniz, de uma Rainha Santa, de um São Nuno Álvares Pereira, de uma Santa Beatriz da Silva, de um Dom Vasco da Gama, de uma Dona Filipa de Vilhena, ou de um Henrique de Paiva Couceiro, não podemos enjeitar a funesta herança daqueles nossos concidadãos que, como os regicidas, mancharam a nossa História com o sangue inocente de um Rei e de um Príncipe Real.

Se nos compete honrar a memória dos heróis, a triste sina dos traidores à Pátria nos obriga a pedir perdão ao Altíssimo pelos seus crimes e humildemente suplicar a Deus que nos conceda a graça da fidelidade e nos faça dignos filhos da Igreja e desta fidelíssima nação, a que nos orgulhamos de pertencer. «Vós sois o meu refúgio, defendei-me dos perigos, fazei que à minha volta só haja hinos de vitória»[1].

2. Cumprimentos. Antes de prosseguir com a exegese dos textos proclamados na liturgia da palavra desta celebração eucarística, importa saudar Suas Altezas Reais, os Duques de Bragança, o Senhor Dom Duarte e a Senhora D. Isabel, que, na sua qualidade de Chefes da Casa Real, são os representantes do penúltimo Rei de Portugal e do seu filho primogénito, em cuja memória se celebra esta Missa.

Este seu gesto, já habitual, releva não só piedosos sentimentos cristãos, mas também um muito salutar entendimento do seu patriotismo e da sua caridade cristã. Com efeito, sendo o actual Chefe da Casa Real procedente de um outro ramo da Casa de Bragança, seria compreensível que se dispensasse do encargo de homenagear os penúltimos membros da linha primogénita da Família Real, entretanto extinta, que esteve na origem do exílio e espoliação do Senhor D. Miguel I e da sua augusta descendência. Contudo, numa atitude que muito honra a sua condição cristã e o seu patriotismo, o Senhor Dom Duarte cumpre anualmente com esta nobre devoção, que evidencia a sua capacidade de antepor aos seus próprios sentimentos pessoais e às vicissitudes históricas da Família Real, o superior interesse da dinastia e da nação, como aliás sempre foi timbre da Casa de Bragança.

Ao Senhor Prior desta belíssima e emblemática Igreja de São Vicente de Fora agradeço a disponibilidade para esta celebração, assegurando-lhe a minha fraternal estima e uma especial lembrança nas minhas orações.

Não posso deixar de agradecer também ao Presidente da Causa Real a sua presença neste acto, bem como ao Presidente da Real Associação de Lisboa que, ao mandar celebrar esta Santa Missa, teve a amabilidade de me convidar, permitindo-me assim prestar, na medida em que a minha condição sacerdotal o permite, a minha humilde homenagem à Família Real e à Instituição que também os meus maiores serviram. Cumprimento, com especial deferência, o Presidente do Instituto da Nobreza Portuguesa e o Presidente da Associação da Nobreza Histórica de Portugal.

Refiro ainda a já habitual presença dos dignitários das Ordens dinásticas de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa e de Santa Isabel, bem como os meus confrades da Soberana Ordem Militar de Malta e da Ordem de Cavalaria do Santo Sepulcro de Jerusalém, de que é Dama Grã-Cruz Sua Alteza a Senhora Infanta D. Maria Adelaide, que ontem mesmo festejou o centenário do seu nascimento e a quem felicito muito especialmente, em oração de acção de graças a Deus pelo dom da sua vida e do seu notabilíssimo testemunho cristão.

Saúdo também as demais organizações aqui representadas, com especial menção para os jovens monárquicos, prova viva da perenidade do ideal que os anima. Abraço por último, mas com igual afecto, todos os outros fiéis presentes, qualquer que seja a sua filiação partidária porque, na casa de Deus, que é a sua Igreja, todos somos irmãos na comunhão da mesma fé, esperança e caridade, qualquer que seja a nossa raça, língua, condição social ou opção política, desde que compatível com os valores cristãos.

3. A virtude do patriotismo. «Jesus dirigiu-se à sua terra e os discípulos acompanharam-no. Quando chegou o sábado, começou a ensinar na sinagoga. Os numerosos ouvintes estavam admirados e diziam: ‘De onde lhe vem tudo isto? Que sabedoria é esta que lhe foi dada e os prodigiosos milagres feitos por suas mãos? Não é Ele o carpinteiro, Filho de Maria, e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E não estão as suas irmãs aqui entre nós?’ E ficavam perplexos a seu respeito»[2].

Esta breve passagem de Jesus por Nazaré – a terra de que tomou nome e em que viveu a maior parte da sua vida terrena, embora fosse natural de Belém de Judá[3] – é rica em ensinamentos. O exemplo da vida familiar e do trabalho artesanal do divino «carpinteiro, Filho de Maria»[4], é uma lição para todos nós, também chamados à perfeição da caridade em e através dos nossos deveres domésticos e profissionais.

Em boa hora o recordou o Concílio Vaticano II[5], cujo cinquentenário festejaremos no presente ano. A este propósito, o Santo Padre Bento XVI convocou a Igreja universal para a celebração do Ano da Fé, que terá início precisamente no próximo dia 11 de Outubro, aniversário da solene abertura do referido Concílio ecuménico[6].

O aludido regresso de Nosso Senhor «à sua terra»[7], em que decorrera o seu crescimento «em sabedoria, em estatura e em graça diante de Deus e dos homens»[8], também nos ensina a necessidade de cultivar o amor à Pátria e a necessidade de educar a juventude na escola dos valores cristãos e dos exemplos da nossa História.

A pátria é, como o seu próprio nome indica, a terra dos pais. Era tão vivo o apego dos israelitas à terra dos pais que o Patriarca José, morto no exílio, quis ser sepultado na terra prometida[9]. Pela mesma razão, os habitantes daquela nação escolhida não se recenseavam no local da sua residência, mas no lugar de proveniência da sua família. É esta a razão que explica a viagem a Belém de Maria e de José, porque este «era da casa e família de David»[10]. E é, precisamente quando se encontram nessa pequena povoação da Judeia, que ocorre o nascimento de Jesus, para que assim se cumprissem as Escrituras[11].

O patriotismo é uma virtude moral exigida pelo IV Mandamento da Lei de Deus, que impõe a gozosa obrigação de honrar os progenitores. A veneração devida aos pais é extensiva à terra que, por ser deles, é, em sentido etimológico, a nossa pátria. Este sentimento patriótico é compatível com o respeito por todas as nacionalidades, de modo análogo a como a piedade filial não se opõe ao dever universal da caridade. Outra coisa seria um nacionalismo de carácter xenófobo, absolutamente incompatível com a exigência do Mandamento novo do Senhor[12], o qual atesta, ou não, a autenticidade da nossa condição de seus discípulos[13], ou seja, de verdadeiros cristãos.

Se o patriotismo decorre da piedade filial, é razoável que aos pais corresponda, em primeiríssimo lugar, a incumbência de instruir os seus filhos nos valores e tradições da sua terra e das suas gentes. Com a naturalidade com que se transmitem os princípios da religião, ou as normas da boa educação, as famílias devem ter também a preocupação de legar às gerações mais novas as tradições nacionais, que são expressão da identidade colectiva.

Nestes tempos, em que a História de Portugal é uma matéria quase omissa nos currículos escolares, ou a sua referência é feita em termos ideológicos que distorcem o seu verdadeiro sentido, há que apelar para a responsabilidade dos pais e avós em relação à formação religiosa e patriótica dos seus filhos e netos. É preciso que a nossa memória, como nação, não se dilua nos meandros dos projectos educativos de carácter global, que muitas vezes servem obscuros desígnios de suspeitas ideologias e interesses mundiais. É urgente que os exemplos dos nossos egrégios avós se conheçam nas nossas casas e que os nossos santos e heróis, agora que parece que foram expulsos dos calendários oficiais, continuem a ser as nossas principais referências e os modelos em que se inspira, sem anacrónicos saudosismos, a educação da nossa mocidade.

4. O difícil ofício de reinar. É significativo que São Marcos, que nos diz que Nosso Senhor foi carpinteiro durante os anos da sua vida em Nazaré[14], não refira que São José também desempenhara a mesma profissão. Contudo, não faltam referências bíblicas relativas ao ofício exercido por José, o esposo de Maria, a que os demais evangelistas atribuem o mesmo trabalho profissional exercido por Nosso Senhor, antes de iniciar a sua vida pública[15].

Não será portanto descabido concluir que a arte artesanal desempenhada pelo Filho de Deus durante quase toda a sua vida terrena e no qual foi experimentado mestre, porque d’Ele disseram os seus contemporâneos que tudo fez bem[16], foi um ofício aprendido directamente de seu pai e no seu ambiente familiar. São José, que era descendente, por varonia, do segundo Rei de Israel[17], ao mesmo tempo que ensinava a Jesus a história e tradições da sua nobilíssima estirpe, uma vez que era da casa e família do Rei David[18], também O instruía no ofício familiar, em que lhe viria a suceder.

Se é característico da Instituição real o seu carácter acentuadamente familiar, como em celebração análoga já se teve ocasião de recordar no ano passado, também é específico da monarquia esta aprendizagem familiar do difícil ofício de reinar. Com efeito, os reis, ao contrário de outros quaisquer titulares de cargos públicos, recebem desde o seu nascimento uma formação específica, que os prepara e habilita particularmente para o serviço da nação. O monarca não é uma pessoa guindada ao topo da hierarquia social por nenhum interesse particular, nem uma pessoa que chega à mais alta magistratura política em virtude do resultado de uma qualquer consulta popular, que nem sempre escolhe os melhores para as mais delicadas funções, mas alguém que foi preparado desde o nascimento para a superior representação do Estado, segundo a lógica do desinteresse pessoal e do bem comum.

Não deve estranhar que assim seja porque, com efeito, a chefia de Estado requer um apurado sentido patriótico e uma esmerada formação moral. Tais atributos nem sempre são compatíveis com os interesses partidários ou os arranjos eleitorais que estão, muitas vezes, na origem da ascensão política de indivíduos que, pela sua inexperiência ou falta de carácter, não dignificam a nação que representam ao mais alto nível. Pelo contrário, como ensina a sabedoria popular, «filho de peixe, sabe nadar».

Por isso, um presumível herdeiro do trono é submetido, desde o início da sua vida, a uma intensa formação específica, que o prepara para a eventualidade de um dia ser chamado a reinar. Mas reinar, segundo o ensinamento evangélico[19], mais não é do que servir e, por isso, essa instrução própria procura incutir no candidato à função régia um acentuado espírito de sacrifício e de abnegação: sacrifício, porque a sua existência há-de ser vivida apenas na lógica do bem nacional, a que hão-de ceder quaisquer outros interesses pessoais; abnegação, porque lhe está vedado qualquer protagonismo que não decorra, com necessidade, do legítimo exercício do seu poder.

Na medida em que o monarca, nos regimes constitucionais, reina sem governar, é um elemento de coesão e de unidade nacional, ao contrário dos líderes partidários que assumem a chefia do Estado e que, em geral, são sempre um factor de discordância política e de desagregação nacional.

A natureza não democrática, por assim dizer, da realeza, não é no entanto razão para que a Instituição seja vista com alguma reserva, por quem legitimamente defende a participação activa do povo na governação do país. Não só porque o efectivo exercício do poder executivo seria sempre confiada àqueles que demonstrassem merecer a confiança popular, mas também porque os regimes democráticos reconhecem que se faculte o acesso a algumas funções públicas de relevo não por plebiscito popular, mas pela provada competência e integridade da pessoa indigitada[20].

Ora a realeza, mais do que mero título ou condição, tem carácter de verdadeira profissão, sendo por isso da maior conveniência que, aqueles que são chamados para o serviço do bem comum no exercício dessa magistratura, sejam para o efeito preparados desde a sua nascença. E, como o exercício do poder real, mais do que uma competência técnica específica, exige uma elevada preparação moral, ninguém melhor do que a Família Real para incutir, no futuro monarca, as virtudes necessárias ao bom desempenho da chefia do Estado[21].

5. Homenagem a Sua Alteza Real, o Senhor Dom Luís Filipe, Príncipe Real. Seria porventura injusto afirmar que o breve reinado do Senhor D. Manuel II se ficou a dever ao facto de não ter sido inicialmente preparado para ocupar o trono, mas não restam dúvidas de que o seu malogrado irmão, o Príncipe Real, estava extraordinariamente apto para o desempenho do cargo que, não fora o regicídio, teria exercido certamente com grande sabedoria e óptimo proveito para Portugal.

Tendo, no ano passado, prestado a minha sentida homenagem às Rainhas de Portugal, sobretudo nas régias pessoas da Senhoras Dona Maria Pia e Dona Amélia, sem esquecer a Senhora Dona Isabel, quereria aproveitar esta circunstância para evocar brevemente Sua Alteza Real o Senhor Dom Luís Filipe, o Príncipe Real, a mais jovem vítima do trágico atentado de 1 de Fevereiro de 1908. Por razão da circunstância de nunca ter reinado, embora tenha sobrevivido por breves instantes a seu Pai, e ter o seu falecimento ocorrido no mesmo atentado em que também perdeu a vida El-Rei D. Carlos I, o Senhor Dom Luís Filipe parece nunca ter deixado a sombra correspondente à sua subalterna condição de príncipe herdeiro e de vítima secundária do dramático regicídio que pôs termo à sua tão jovem e promissora existência. Mas é de justiça que o quilate do seu carácter, a sua lealdade à Pátria e a sua valentia no serviço de El-Rei sejam recordados, muito sucintamente, no âmbito desta homilia.

Sem ânimo de esgotar a sua breve biografia, recorde-se que foi em Casa e sobretudo de seus augustos Pais, que Dom Luís Filipe aprendeu que a principal nobreza não é a que nasce das honrarias, ou dos títulos, nem a que se recebe pelo sangue, mas a que se afirma pelo espírito e se demonstra nas obras de serviço. Embora nascido em berço de oiro, o então Duque de Bragança não conheceu o conforto e as facilidades de que se costumam rodear as crianças da sua privilegiada condição, mas a exigência quase espartana de quem tem uma árdua missão a cumprir e a enorme responsabilidade de ser, pela sua vida, um exemplo e um modelo para os seus futuros súbditos.

Ser Rei é ser o primeiro na honra mas, sobretudo, o primeiro no serviço. Mais do que titular de privilégios e regalias, o monarca está, ao longo de toda a sua existência, preso aos pesados grilhões dos mais penosos deveres. Por isso, o Príncipe Real não foi educado para se passear nos salões, como um cortesão ou um boémio, mas para ser o primeiro vassalo de El-Rei e o seu mais destemido e sacrificado soldado, na contínua disponibilidade para o serviço da pátria. Educado segundo o espírito do Colégio Militar, cujo batalhão de alunos comandou, cedo conheceu o rigor das funções oficiais: fez o juramento, como Príncipe herdeiro, aos 14 anos; tomou posse, em 1906, do seu lugar no Conselho de Estado e assumiu a regência do Reino nesse mesmo ano, por ocasião da viagem dos soberanos à Corte de Madrid. Na companhia dos seus mestres e tutores, entre os quais cabe destacar Mouzinho de Albuquerque, sacrificadamente percorreu, de lés a lés, o império português, nomeadamente algumas das colónias ultramarinas.

Não estranha, portanto, que o seu último gesto, que por sinal lhe custou a vida, fosse um derradeiro acto de nobreza e de serviço. Com efeito, depois de traiçoeiramente assassinado El-Rei D. Carlos, com dois tiros disparados à sua rectaguarda, o Príncipe Real, que estava sentado à frente do monarca, levantou-se para responder ao vil ataque em que já perecera o seu Pai e o seu Rei. Foi então que ficou, ele também, na mira do regicida que, com um novo tiro, atingiu mortalmente o Senhor D. Luís Filipe, que veio a falecer pouco depois.

Nele parece ter-se inspirado o poeta quando escreveu: «Raia-lhe a farda o sangue / De braços estendidos,/ Alvo, louro, exangue,/ Fita com olhar langue/ E cego os céus perdido./Tão jovem! Que jovem era!»[22].

A vida foi o preço que o Príncipe Real pagou pelo seu patriotismo. E a valentia daquele desesperado ímpeto do seu amor filial e da sua fidelidade a El-Rei é tanto mais digna de ser celebrada quanto, naquela hora aziaga, foi a excepção à regra de muitas cobardes omissões, também entre os que era de esperar uma maior lealdade para com a Família Real.

Quero crer que é neste mesmo espírito cristão de abnegado serviço à pátria que Sua Alteza Real, o Senhor Dom Afonso, Príncipe da Beira, se prepara para a presumível representação dos Reis de Portugal, sem esquecer as suas actuais responsabilidades como imediato sucessor na chefia da Casa Real. Tem, decerto, em seus augustos Pais, o melhor exemplo e os melhores mestres. Conta também com a oração e o estímulo de todos nós, não apenas para que amanhã possa restaurar o lustre da sua Casa e de Portugal, mas para que desde já seja, pelo seu exemplo cristão e pelo seu patriotismo, uma referência para todos os jovens portugueses.

6. Conclusão. «Não é Ele o carpinteiro, Filho de Maria […] ?»[23]. É provável que, ao ter ocorrido este episódio em Nazaré, Nossa Senhora o tenha presenciado, prestando ao seu divino Filho a homenagem da fé e a adoração que os seus conterrâneos Lhe negaram.

Mais longe do que podia a razão humana e mais fervoroso do que o querer dos homens, assim o entendimento e o amor da «cheia de graça»[24], que nesta sua terra de Santa Maria veneramos especialmente como Nossa Senhora da Conceição, terão sabido transcender aquela desventura momentânea, na certeza de uma nova esperança. Também a tragédia do regicídio desperta, em nós, a expectativa de uma nova era.

Seja Ela, a Senhora da Conceição, a nossa intercessora junto de Deus Pai, de quem é filha, de Deus Filho, de quem é mãe, e de Deus Espírito Santo, de quem é esposa. Seja Ela, Santa Maria, a nossa voz junto de Deus, na inspirada prece do poeta: «Dá o sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia -, /Com que a chama do esforço se remoça,/ E outra vez conquistemos a Distância – / Do mar ou outra, mas que seja nossa!»[25].

Assim seja!

P. Gonçalo Portocarrero de Almada

Lisboa, Igreja de São Vicente de Fora, 1-2-20

[1] Mc 6, 5.
[2] Cfr. Salmo 40 (41), 10.
[3] Cfr. 2 Sam, 24, 15.
[4] Cfr. Mt 1, 1-17, Lc 1, 30-33.
[5] 2 Sam 24, 17
[6] Salmo 31 (32), 5c
[7] Salmo 31 (32), 7.
[8] Mc 6, 1-3.
[9] Cfr. Mt 2, 1; Lc 2, 1-7.
[10] Mc 6, 3.
[11] Cfr. Concílio Vaticano II, Constituição dogmática ‘Lumen Gentium’, capítulo V, Vocação universal à santidade na Igreja, nº 39-42.
[12] Bento XVI, Carta apostólica ‘Porta da Fé’, 11-10-2011, nº 4.
[13] Mc 6,1.
[14] Lc 2, 52.
[15] Cfr. Heb 11, 22.
[16] Lc 2, 1-5; cfr. 1, 27; Mt 1, 20.
[17] Cfr. Mt 2, 1-6; Lc 2, 5-7.
[18] Jo 13, 34; 15, 12-13, etc.
[19] Jo 13, 35.
[20] Cfr. Mc 6, 3.
[21] Cfr. Mt 13, 55; Lc 4, 22.
[22] Cfr. Mc 7, 37.
[23] O Rei David, que sucedeu a Saul no trono de Israel (cfr. Mt 1, 20).
[24] Mt 1, 1-17; cfr. Lc 3, 23-38.
[25] Cfr. Mt 16, 24-28; 20, 20-28; Lc 14, 7-11; Jo 13, 1-17, etc.
[26] O Chefe de Estado Geral das Forças Armadas, os Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional, o Presidente da Academia das Ciências, etc., não são sufragados pelo voto dos cidadãos e, contudo, ninguém nega a legitimidade que lhes assiste no exercício dos cargos que exercem para o bem da nação.
[27] Que o exercício do poder é, de facto, a melhor escola de governação, parece provar-se pelo facto de quase todos os chefes de Estado repetirem o inicial mandato, até ao ponto de se eternizarem no poder, salvo que a lei constitucional o não permita. Por sinal, não deixa de ser um princípio antidemocrático o que veda um terceiro ou quarto mandato a um titular de um poder público, ao mesmo tempo que uma envergonhada confissão de que o povo, quando livre, opta pela continuidade e estabilidade dos mais altos dignitários da nação, porventura manifestando deste jeito uma reminiscência histórica do favor popular com que sempre foi agraciada a instituição monárquica.
[28] Fernando Pessoa, O menino da sua mãe, versos 6-12.
[29] Mc 6, 3.
[30] Lc 1, 28.
[31] Fernando Pessoa, Prece, XII, in Mensagem, edição clonada, Guimarães Editores S. A, 2009, pág. 67.

Fonte: Real Associação de Lisboa

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