sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

A suspensão da descrença

 


O Rei é livre, já se gritou em Almacave. Que
se continue a viver num regime que promove
a ilusão de liberdade é algo que é nossa
responsabilidade combater e denunciar.

Existe uma espécie de contrato tácito que é pedido aos leitores de ficção literária ou espectadores de artes performativas como o cinema ou o teatro, por exemplo: é a suspensão da descrença. Ou seja: pelo tempo que durarem aqueles espectáculos ou aque­las páginas nós acreditamos que os personagens são reais, que vivem e acreditam o que exibem naquele momento. Mesmo o mais cínico dos cínicos não terá coragem de interromper uma peça para dizer que nada do que está em palco é verda­de e que os actores não são quem ali estão a dizer que são. É um acordo benéfico para as duas partes e que resulta quanto melhor essa descrença for consegui­da por quem escreve ou interpreta.

Se o leitor começa a estranhar o intróito inesperado, avanço já com a analogia: a eleição de um presidente da república portu­guesa – para ficarmos pelo que nos é próximo e nos interessa - vive também da suspensão da descrença. Expliquemos: o ar­tigo 122 da nossa Constituição declara que como condição de elegibilidade o candidato deva ser cidadão português e com idade igual ou superior a 35 anos, desde que não possua impedimentos legais para isso. O que está implí­cito neste artigo é a possibilidade de qualquer cidadão português que reúna as condições descritas poder chegar ao cargo de chefe de Estado. Primeira suspensão da descrença: a possibilida­de está lá e é bom que exista e que se a possa garantir; mas a probabilidade de facto de um qualquer cidadão anónimo chegar ao cargo de chefe de Estado é reduzidíssima, mesmo que para isso te­nha conseguido reunir as 7.500 assina­turas de eleitores que a lei prevê como número mínimo. A eleição presidencial pede sempre uma máquina eleitoral cara; são de facto os partidos políti­cos que, ao apoiarem determinado cidadão, oferecem as condições ne­cessárias para a sua candidatura, por mais apoios privados ou fortuna pessoal que o candidato possua. O que naturalmente torna o candidato ao cargo mais elevado do país refém de ideologias e eleitorados de quem o apoiou. O que nos leva à segunda falácia, utilizada indistintamente por todos os presidentes eleitos em democracia após terem vencido as eleições: “Sou e serei o presidente de todos os portugueses”. Embora para efeitos legais e práticos isso passe a ser verdade durante o mandato, o presidente é dos portugueses que o elegeram. Os outros – os que votaram noutro candidato ou se abstiveram – ou não se revêm no chefe de Estado ou pouco lhes importa.

Quem quiser acreditar que o cargo de chefe de Estado no sistema presidencial é acessível a qual­quer um e que depois de eleito passa a ser uma figura transversal e amada e respeitada por todos está em plena suspensão da des­crença. Se quisermos uma das grandes vantagens das monarquias podemos come­çar por aqui mesmo: o Rei é uma figura perene, preparada e conhecida por todos para assumir o seu papel. Assim como é conhecido quem o sucede. Mais importante ainda - e natural­mente refiro-me sempre às monarquias constitucio­nais – o Rei é independente, suprapartidário e supra­-ideológico, limitado apenas pela lei fundamental do seu país aprovada que define o seu papel e poder na vida pública e política.

O primeiro presidente e a origem do semipresidencialismo

A história do sistema presidencial português é longa e por vezes sinuosa. Logo depois da Revolução Republicana, o primeiro presidente da autoproclamada Repúbli­ca Portuguesa - Manuel de Arriaga – foi eleito co­legialmente pela recém­-formada Assembleia Nacional Constituinte – que por sua vez foi eleita por sufrágio directo (mas não universal) e em apenas metade dos círculos elei­torais. Como em determinadas circuns­crições havia mais lugares por preencher do que candidatos, os vencedores eram proclamados eleitos sem votação… Para além de ter aumentado a incapacidade eleitoral dos cidadãos em relação ao que havia em monarquia, a república rejeitou o sufrágio universal interditando o voto às mulheres, analfabetos e uma parte dos mi­litares. Sidónio Pais ainda tentou, em 1918, devolver o voto aos cidadãos mascu­linos com idade acima dos 21 anos. Mas a história foi a que se soube e as inca­pacidades repostas no ano seguinte. Coisas da ética republicana.

A Revolução de Maio de 1926 e o Estado Novo a que veio dar lugar relegou a escolha do chefe de Estado a uma farsa que esvaziou do cargo toda a réstia possível de dignidade, com eleições mani­puladas e com os candi­datos que se opunham ao regime a serem perseguidos ou ameaçados.

Com o advento da demo­cracia, e depois de passadas as tribulações que todas as revoluções trazem agarradas, o general Ramalho Eanes tor­na-se o primeiro presidente a ser eleito em sufrágio directo e universal em 1976 e já sob a nova constituição aprovada uns meses antes. Eanes inaugura também o sistema semipresidencial portu­guês, ainda hoje em vigor.

É um híbrido político estranho, este sistema. O seu embrião terá surgido na República de Weimar ale­mã (1919-1933). Um sistema praticamente forçado pelas potências aliadas que tinham vencido a Alema­nha na I Grande Guerra, em que os políticos eram dependendo das diferentes concepções adoptadas.

No semipresidencialismo o chefe de Estado tem poderes executivos, como o de voto ou o da disso­lução da Assembleia da República – o que pode ser uma maneira de contornar a impossibilidade directa de demitir o governo.

Portugal partilha o chamado sistema premier-prési­dent com vários países, desde a França ao Madagáscar passando pelo Burkina-Faso. Não está consagrado em nenhum artigo constitucional. O sistema não está explicitado e é justificado pela prática política. Assim como a divisão de poderes. Extraordinário, quando existe uma alínea, a b), do artigo 288º da Constitui­ção portuguesa) sobre a revisão constitucional que apenas admite de forma clara os limites materiais da revisão da constituição se for respeitada a natu­reza específica do regime republicano. Mas isso já os monárquicos sabem há muito e contra isso lutam há muito tempo.

As debilidades deste tipo de regime são óbvias e têm-se feito sentir por vezes de forma clara e tensa. A instabilidade política que advém de uma situação de coabitação – que acontece quando o chefe de Es­tado é eleito com o apoio de forças políticas adver­sárias das que formam o executivo – é recorrente na história da democracia portuguesa. Recorde-se os casos de Eanes com Soares e do presidente Soares com Cavaco Silva, para não ser exaustivo. O sistema semipresidencial reforça a fragilidade que é ter um chefe de Estado refém de ideologias e outros interesses partidários ou não. Mais uma vez, a ideia do mero árbitro ou moderador é uma suspensão da descrença. Como muitas vezes pode acontecer que seja o próprio governo a pres­sionar o chefe de Estado para aprovar determinados pontos fracturantes da agenda que defende.

Não sendo republicano, estranho este sistema fa­laciosamente montado para garantir um equilíbrio e cooperação entre órgãos de soberania. Está viciado à partida pelo facto aqui reiterado e nada despiciendo da falsa independência do chefe de Estado.

Só o Rei consegue garantir a estabilidade e a real distância dos interesses partidários e outros que cercam todos os presidentes da república. O Rei é livre, já se gritou em Almacave. Que se continue a viver num regime que promove a ilusão de liberda­de é algo que é nossa responsabilidade combater e denunciar.


Nuno Miguel Guedes


Fonte: Real Associação de Lisboa

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