domingo, 6 de março de 2022

Meditação do Arcebispo Carlo Maria Viganò para a Santa Quaresma

 



2 de Março de 2022
Feria IV Cinerum, in capite jejunii

Venite, convertimini ad me, dicit Dominus.
Venite flentes, fundamus lacrymas ad Deum:
quia nos negleximus, et propter nos terra patitur:
nos iniquitatem fecimus,
et propter nos fundamenta commota sunt.
Festinemus anteire ante iram Dei,
flentes et dicentes:
Qui tollis peccata mundi, miserere nobis.

Transitorium ambrosianum
in Dominica Quinquagesimæ


Vinde e convertei-vos a mim, diz o Senhor. Vinde chorando, derramemos lágrimas a Deus: porque transgredimos e, por nossa causa, a terra sofre: cometemos iniquidades e, por nossa causa, os seus fundamentos foram abalados. Apressemo-nos a prevenir a ira de Deus, chorando e dizendo: Vós que tomais sobre Vós os pecados do mundo, tende piedade de nós.   

É difícil, para um homem de hoje, compreender estas palavras do Missal Ambrosiano. Não obstante, são simples na sua severa clareza, pois mostram-nos que a ira de Deus, por causa dos nossos pecados e das nossas traições, só pode ser apaziguada com a contrição e a penitência. No Rito Romano, este conceito torna-se ainda mais claro na oração da Ladainha dos Santos: Deus, qui culpa offenderis, pænitentia placaris: preces populi tui supplicantis propitius respice; et flagella tuæ iracundiæ, quæ pro peccatis nostris meremur, averte. Ó Deus, ofendido pela culpa e apaziguado pela penitência: olhai favoravelmente para as orações do Vosso povo que Vos implora; e afastai de nós os flagelos da Vossa ira, que merecemos por causa dos nossos pecados.

A Civilização Cristã aprendeu a tirar proveito desta noção salutar, que nos afasta do pecado não só por medo do castigo justo que implica, mas também pela ofensa causada à Majestade de Deus, «infinitamente bom e digno de ser amado sobre todas as coisas», como nos ensina o Acto de Contrição. No decurso dos séculos, a humanidade convertida a Cristo soube reconhecer o castigo de Deus nos acontecimentos lutuosos da história, nos terramotos, na fome, na peste e nas guerras; e sempre o povo atingido pelos flagelos soube fazer penitência e implorar a Misericórdia divina. E quando o Senhor, a Santíssima Virgem ou os Santos intervieram nos acontecimentos humanos por meio de aparições e revelações, juntamente com o apelo à observância da Lei de Deus, ameaçaram grandes tribulações se os homens não se convertessem. Também em Fátima, Nossa Senhora pediu a Consagração da Rússia ao Seu Imaculado Coração e a Comunhão reparadora dos Primeiros Sábados como meio para aplacar a ira de Deus e poder gozar de um período de paz. Caso contrário, a Rússia «espalhará os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas». O que devemos esperar por ter ignorado os pedidos de Nossa Senhora e por ter continuado a ofender o Senhor com pecados cada vez mais horríveis? «Não quiseram satisfazer o Meu pedido! Tal como o Rei de França, arrepender-se-ão e fá-lo-ão, mas será tarde. A Rússia já terá espalhado os seus erros por todo o mundo, causando guerras e perseguições à Igreja». Estas guerras, que hoje afligem a humanidade para a escravizar e submeter ao plano infernal do Great Reset inspirado no Comunismo chinês, são, mais uma vez, o resultado da nossa indocilidade, da nossa obstinação em acreditar que se pode espezinhar a Lei do Senhor e blasfemar o Seu Santo Nome sem consequências. Que presunção miserável! Quanto orgulho luciferiano!  

O mundo descristianizado e a mentalidade secularizada, que contagiaram até os católicos, não aceitam a ideia de um Deus ofendido pelos pecados dos homens, e que os castiga com flagelos para que se arrependam e peçam perdão. No entanto, este conceito está entre aqueles que a mão criadora de Deus imprimiu na alma de cada homem, inspirando-lhe o sentido de justiça que os pagãos também têm. Mas precisamente porque está presente em todos os homens de todos os tempos, os contemporâneos ficam horrorizados com a ideia de um Deus que recompensa os bons e castiga os maus, um Deus que se mostra na Sua cólera, que exige lágrimas e sacrifícios a quem O ofende.       

Por detrás desta aversão à ira do Senhor ofendido pelos pecados da humanidade – e ainda mais pelos pecados daqueles que Ele fez Seus filhos no Baptismo – está o ódio implacável do inimigo do género humano pelo Sacrifício redentor de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela Paixão do Filho de Deus, pelo resgate que o Seu Sangue mereceu a cada um de nós depois da queda de Adão e dos nossos pecados pessoais. Um ódio que se mantém desde a criação do homem, numa tentativa louca de frustrar a obra de Deus, de desfigurar a criatura feita à Sua imagem e semelhança, e ainda mais para impedir a reparação divina de Cristo, novo Adão, e de Maria, nova Eva. Na Cruz, o novo Adão restaura a ordem quebrada pelo pecado como Redentor; ao pé da Cruz, a nova Eva participa nesta restauração como Co-Redentora. O fracasso da acção de Satanás realiza-se na obediência da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade ao Pai, na humilhação do Filho de Deus, tal como a tentação de Adão foi consumada na desobediência à vontade do Senhor e na orgulhosa presunção de poder quebrar as Suas ordens sem consequências.

O mundo não aceita a dor e a morte nem como castigo justo pelo pecado original e pelos pecados presentes, nem como instrumento de resgate e de redenção em Cristo. E é quase um paradoxo: aquele mesmo que, através da tentação dos nossos Progenitores, introduziu a morte, a doença e a dor no mundo, não tolera que esses também possam ser instrumentos de expiação, aceites com humildade, para reparar a Justiça quebrada. Não tolera que as armas de destruição e de morte possam ser-lhe retiradas para se tornarem instrumentos de reconstrução e de vida.    

O homem contemporâneo é novamente enganado por Satanás, tal como no Jardim do Éden. Nessa altura, a Serpente fê-lo acreditar que a ordem de Deus para não colher o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal não teria consequências, na verdade, que, por essa desobediência, Adão se tornaria semelhante a Deus; hoje, engana-o de que essas consequências são inescapáveis, e que não pode aceitar a morte, a doença e a dor como um castigo justo, transformando-as em seu próprio benefício unindo-as à Paixão e Morte de Jesus Cristo. Porque ao aceitar a punição, o réu aceita a autoridade do Juiz, reconhece a infinita gravidade da culpa, repara o crime cometido e expia a merecida punição. Ao fazê-lo, volta à graça de Deus, frustrando a obra de Satanás.         

Por esta razão, quanto mais se aproxima o fim dos tempos, tanto mais se multiplicam as tentativas do Maligno para eliminar não só a Verdade revelada por Cristo e pregada ao longo dos séculos pela Santa Igreja, mas para eliminar o próprio conceito de justiça que está na base da Redenção, a ideia da necessidade da punição pela violação, de reparação pela culpa, da gravidade da desobediência da criatura para com o Criador. É evidente que quanto mais os homens forem levados a acreditar que não cometeram nenhum pecado, mais pensarão que não têm de se arrepender de nada, que não têm nenhuma dívida de gratidão para com Deus, que amou tanto o mundo a ponto de dar o Seu Filho Unigénito, obediente até à morte e morte de cruz.  

Se olharmos à nossa volta, vemos como esta eliminação da Justiça, do sentido do Bem e do Mal, da ideia de que existe um Deus que recompensa os bons e castiga os maus, conduz a uma definitiva, irreparável e irremediável rebelião contra o Senhor, premissa para a condenação eterna das almas. O magistrado que absolve o criminoso e pune a pessoa justa; o governante que promove o pecado e o vício e condena ou impede as acções honestas e virtuosas; o médico que considera a doença como uma oportunidade de lucro e a saúde como um erro; o sacerdote que se cala sobre os Novíssimos e considera “pagãos” conceitos como a penitência, o sacrifício e o jejum em expiação dos pecados são todos cúmplices, talvez inconscientes, deste último engano de Satanás. Um engano que, por um lado, nega a Deus o senhorio das criaturas e o direito de as recompensar e punir de acordo com as suas acções; enquanto, por outro lado, chega ao ponto de prometer bens e recompensas que só Deus pode conceder: «Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares» (Mt 4, 9), ousa dizer a Cristo, no deserto, depois de O ter conduzido ao cume do monte.        

Os acontecimentos presentes, os crimes que são cometidos diariamente pela humanidade, a multidão de pecados que desafiam a Majestade divina, as injustiças dos indivíduos e das Nações, as mentiras e as fraudes cometidas impunemente não podem ser derrotadas com meios humanos, nem mesmo se um exército se armasse para restaurar a justiça e punir os ímpios. Porque as forças humanas, sem a Graça de Deus e sem serem animadas por uma visão sobrenatural, são estéreis e ineficazes.   

Mas há uma forma de combater este engano, no qual a humanidade caiu há mais de três séculos, ou seja, desde que teve o orgulho e a presunção de deificar o homem e usurpar a Jesus Cristo a Sua coroa real. E esta forma, infalível porque é divina, é o regresso à penitência, ao sacrifício e ao jejum. Não a vã penitência daqueles que correm num tapis roulant, nem o estulto sacrifício daqueles que se tornam estéreis para não sobrepovoar o planeta, nem o jejum vazio daqueles que se privam de carne em nome da ideologia green. Estes são, mais uma vez, enganos diabólicos com os quais silenciamos a nossa consciência.   

A verdadeira penitência, que a Santa Quaresma nos deve estimular a fazer frutuosamente, é aquela com a qual cada um de nós oferece as privações e os sofrimento em expiação dos próprios pecados e daqueles cometidos pelo próximo, pelas Nações e pelos homens da Igreja. O verdadeiro sacrifício é aquele com o qual nos unimos, com gratidão e reconhecimento, ao Sacrifício de Nosso Senhor, dando um significado espiritual e um propósito sobrenatural à dor que, de qualquer maneira, merecemos. O verdadeiro jejum é aquele com o qual nos privamos de comida, não para perder peso, mas para restaurar a primazia da vontade sobre as paixões, da alma sobre o corpo.       

As penitências, os sacrifícios e os jejuns que faremos durante esta Santa Quaresma terão um valor de reparação e de expiação que nos merecerá, assim como aos nossos entes queridos, ao nosso próximo, à Pátria, à Igreja, ao mundo inteiro e às almas do Purgatório, aquelas Graças que só por si podem deter a ira de Deus Pai, porque ao unirmo-nos ao Sacrifício do Seu Filho transformaremos num tesouro sobrenatural o que Satanás nos causou a todos, induzindo-nos ao pecado com o desobedecer ao Senhor. Este tesouro restaurará a ordem quebrada, restaurará a justiça violada, reparará os pecados que cometemos em Adão e pessoalmente. Ao chaos infernal deve opor-se o kosmos divino; ao príncipe deste mundo, o Rei dos reis; ao orgulho, a humildade; à rebelião, a obediência. «Ora, foi para isto que fostes chamados, visto que Cristo também padeceu por vós, deixando-vos o exemplo, para que sigais os seus passos. […] Ele levou os nossos pecados no seu corpo, para que, mortos para o pecado, vivamos para a justiça: pelas suas chagas fostes curados» (1 Pe 2, 21-24).      

Concluo esta meditação citando a Epístola da Missa da Quarta-feira de Cinzas: é retirada do livro do Profeta Joel e recorda-nos o papel de mediadores e intercessores dos sacerdotes na admoestação do povo de Deus e no chamá-lo à conversão. É um papel que muitos clérigos esqueceram, e que na verdade rejeitam, acreditando que é o legado de uma Igreja antiquada que está desfasada dos tempos, que ainda acredita que o Senhor deve ser “aplacado” com a penitência e o jejum.

«Tocai a trombeta em Sião, ordenai um jejum, proclamai uma reunião sagrada. Reuni o povo, purificai a assembleia, juntai os anciãos, congregai os pequeninos e os meninos de peito. Saia o esposo dos seus aposentos e a esposa do seu leito nupcial. Entre o pórtico e o altar chorem os sacerdotes e digam os ministros do Senhor: “Tem piedade do teu povo, Senhor, não transformes em ignomínia a tua herança, para que ela não se torne o escárnio dos povos! Porque diriam: ‘Onde está o seu Deus?’”. O Senhor encheu-se de zelo pelo seu país e teve compaixão do seu povo. O Senhor respondeu ao seu povo, dizendo: “Vou enviar-vos trigo, vinho e azeite, e deles sereis saciados. E nunca mais farei de vós uma ignomínia entre os povos”» (Jl 2, 15-19).   

Enquanto temos tempo, caros irmãos, peçamos piedade a Deus, imploremos o Seu perdão e reparemos os pecados cometidos. Porque chegará um dia em que o tempo da Misericórdia será cumprido e iniciar-se-á o da Justiça. Dies illa, dies iræ: calamitatis et miseriæ; dies magna et amara valde. Esse dia será um dia de ira: um dia de catástrofe e de miséria; um dia grande e verdadeiramente amargo. Nesse dia, o Senhor virá julgar o mundo com o fogo: judicare sæculum per ignem.  

Queira Deus que as admoestações de Nossa Senhora e dos Santos místicos possam induzir-nos, nesta hora de trevas, a convertermo-nos verdadeiramente, a reconhecer os nossos pecados, a vê-los absolvidos no Sacramento da Confissão, a expiá-los com jejuns e penitências. Para que o braço da Justiça de Deus seja travado por poucos, quando deveria cair sobre os muitos. Assim seja.     

 Carlo Maria Viganò, Arcebispo

Fonte: Dies Iræ

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