O último desses casos foi recentemente objeto de julgamento (dos poucos até agora ocorridos neste âmbito) num tribunal holandês. Uma mulher de 74 anos, que padecia de doença de Alzheimer, havia declarado, quatro anos antes, quando a doença já tinha sido diagnosticada mas ainda não lhe tinha retirado as normais capacidades intelectuais e volitivas, que queria ser eutanasiada quando perdesse essas capacidades e devesse, por isso, ser acolhida num lar. Chegado esse momento, o médico acusado nesse julgamento (cuja identidade não foi revelada) praticou a eutanásia com recurso à força, porque a doente resistiu fisicamente, num gesto de luta pela sobrevivência. Esse médico desprezou a vontade atual da doente e deu relevo apenas à vontade que ela havia manifestado quatro anos antes, na fase inicial da doença. Veio a ser absolvido, por se considerar que não desrespeitou as normas holandesas sobre a prática legal da eutanásia.
São vários os motivos de reflexão suscitados por este caso.
Desde logo, será aqui (ainda mais do que noutros casos de eutanásia) difícil falar em morte digna, quando ela é provocada com recurso à força e contra a vontade actual do doente.
Também é difícil dizer que em situações de demência, mais ou menos avançada, seja o sofrimento do doente, intolerável ou não, a motivar a opção pela eutanásia. Mais do que esse sofrimento, será o sacrifício que o cuidado desses doentes representa para familiares e outras pessoas a motivar tal opção. Uma opção que pode ser o próprio doente a tomar precisamente porque não quer ser um peso para os outros, não quer ser causa desse sacrifício. Neste caso, a doente manifestou o desejo de ser eutanasiada quando chegasse um momento não de mais intenso sofrimento, mas de mais acentuada incapacidade, em que, por isso, maior seria o peso que representava para quem dela tivesse de cuidar.
A questão que a este respeito se coloca é: deve uma sociedade que se pretende solidária confirmar, sob o pretexto de respeito pela vontade do doente, essa ideia de que a pessoa demente é um peso difícil de suportar e deve, por isso, ser eliminada? Que sinal está a ser dado, desse modo, a quem se sacrifica, às vezes heroicamente, por esses doentes?
O respeito pela vontade do doente é quase sempre apresentado como fundamento último da licitude da eutanásia. Neste caso, foi dado relevo a uma vontade manifestada quatro anos antes, num momento de suposta lucidez, contra a vontade atual, num momento em que essa lucidez supostamente se teria perdido. Mas como é possível ter a certeza de que a pessoa em causa não teria mudado de opinião (como muitas vezes sucede) perante a aproximação da morte? Manifestar a vontade de morrer num momento ainda tão distante do momento da morte é muito diferente de o fazer nessa altura, num contexto completamente diferente, quiçá muito diferente do que se imaginava anteriormente. A menor dúvida a este respeito deveria levar a tomar, em nome do respeito pela vida e também do respeito pela vontade (real ou hipotética) do doente, a opção contrária à que foi tomada pelo médico holandês em causa.
Este caso também revela, até de uma forma mais nítida, que, em última análise, não é a vontade genuína do doente a justificar a prática da eutanásia. Em última análise, é a decisão do médico e das entidades que o possam supervisionar (neste caso, até o próprio tribunal) a ajuizar da licitude da eutanásia, a interpretar a vontade do doente e a determinar a qual de várias manifestações de vontade deve ser dado relevo. E, como também esta caso revela, pode haver muita arbitrariedade na interpretação dessa vontade e na determinação de qual dessas manifestações de vontade será relevante.
Esta arbitrariedade é mais uma das derivas suscitadas pela rampa deslizante que qualquer legalização da eutanásia origina. Arbitrariedade e derivas que só podem ser evitadas quando se respeita aquele princípio básico e secular da civilização e da ética médica que é a proibição de matar. Quando se derruba essa barreira, é inútil tentar conter possíveis abusos.
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