sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Nasceu há 254 anos

A imagem pode conter: 1 pessoa, sentado

Bocage está para o século XVIII como Antero está para o século XIX e Pessoa para o século XX. A obra é a súmula do tempo que soube encarnar, o perfeito espírito daquele "galante século XVIII". Um mundo de salões literários, da cultura de Corte, da paixão subtil, a época pós-Pombal, onde efervescem as grandes questões jurídicas e onde despontam as grandes discussões filosóficas.

Como um mito permanece indecifrável. Um boémio, um libertino, também o ateu e, mais tarde, o reconvertido, o arrependido ferido de angústias. A sua morte encerra uma era, da cultura clássica, erudita, aristocrática, já no pronúncio do fim dos doces anos do "reinado mariano". Não se conformando com o conforto sofreu as vicissitudes de uma vida desregrada e livre. Também a rivalidade com José Agostinho de Macedo não deixa de ser sintomática dos caracteres: são duas mundividências que se conflituam.

Dele sobra o anedotário, o complexo mistério que ensombra as figuras mais carismáticas. Cultivou a lírica erudita com o gosto popular, a cultura aristocrática com a grosseria do vulgo. Há que dizê-lo: Bocage revolucionou as letras lusas antes da revolução política assolar as estruturas do Antigo Regime, fazendo a lírica descer dos olimpos grandiloquentes do classicismo para as realidades quotidianas, arrancando a poesia do conforto dos salões para o mundo burguês. Ególatra eruptivo e angustiado, procurando engrandecer a palavra pelo universalismo das ideias, quase ascende ao épico. Polarizado entre a Razão e o Sentimento, antecipa a estética romântica, contudo ainda moldado e estruturado pelo neoclassicismo.

Talvez nenhum outro poeta tenha surtido tanta influência nele como Camões. Aliás, os poetas da Arcádia e os cultores do neoclassicismo conferiam a Camões uma nova vitalidade e reivindicavam ali uma nova inspiração. Mas Bocage foi mais longe, reivindicando uma identificação plena. A vida errante do vate quinhentista encontrava na mesma errância bocagiana um entendimento: "Camões, grande Camões, quão semelhante/ Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!"

No leito de morte suspira o arrependimento, um último Soneto: "Já Bocage não sou". É o Bocage anti-Bocage, a negação da vida errante, a descoberta de uma nova luz, um Bocage que grita: "Oh! Se me creste, gente ímpia,/ Rasga meus versos, crê na eternidade!". É o último fôlego de um homem sofrido. Morreu no alvorar de um tempo novo, quando os ventos da revolução sopravam e Portugal se preparava para, em breve, enfrentar um novo ciclo histórico.

Daniel Sousa

Sem comentários: