segunda-feira, 3 de agosto de 2020

O moço de forcado


Então, o forcado. Ele disgrega-se do grupo dos valentes, que nessa manhã chegaram de Alcochete ou de Aldeia Galega [Montijo], e só, no campo desafogado, adianta-se para o bicho em costume de gala: jaleca de ramagens, calção d'anta, cinta encarnada, meias bordadas, e sapatos de prateleira. O seu aspecto cheira ao sol da lezíria, ao rosmaninho da charneca e à terra revolvida pelas charruas. Palpita-lhe a força em cada músculo, e canta-lhe a saúde, vermelha e salgada em cada poro da pele. O touro investe com ele pela barriga. Ele empolga o touro de frente por entre os cornos, escarrancha-se-lhe na cara e afocinha-o no chão.

Não havia no mundo espectáculo mais nobremente sugestivo, mais virilmente belo, mais legitimamente português. Os que governam Lisboa, proibindo as pégas, suprimiram o moço de forcado. Depois demoliram a praça. Acabaram por fim com as tardes de touros em Lisboa.
De sorte que é por esse Ribatejo fora, as corridas da Alhandra, de Vila Franca de Xira, de Samora Correia, de Salvaterra de Magos, que eu terei de ir mais este verão, de jaleca ao ombro, faca no bolso e uma melancia debaixo do braço, refazer-me de nacionalidade, de força, de literatura e de poesia na sagrada tradição da minha terra.

Às razões de brandura de costumes, de humanidade, de filosofia, de civilização, invocadas pelos que dirigem esta jigajoga, eu, humilde intérprete do povo, só uma coisa oponho: é que maus raios partam o zelo tísico de tanto maricas, de tanto chochinha, de tanto lambisgóia!

Ramalho Ortigão in «Álbum de Costumes Portugueses», 1888


Fonte: Veritatis

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