terça-feira, 10 de agosto de 2010

A República, um «estonteamento nervoso».

Uma das fontes mais credíveis para o estudo da Primeira República é a epistolografia pessoal e política. Ela revela os momentos candentes e as manigâncias dos homens do regime, e uma descrição muito mais sincera dos atalhos para os fins, geralmente de cariz corporativo, partidário e ideológico. De resto, em 100 anos, neste aspecto, pouca coisa mudou.

Nesse sentido, apela-se para a leitura da Correspondência política de Manuel de Arriaga, o decano do republicanismo português que na sua proverbial carreira política soube, melhor do que ninguém, atalhar o melhor que pode para salvaguardar os interesses do regime, mas sobretudo os seus e os dos seu «partido». Sirva como exemplo maior a epístola 310, confidencial e datada de 23-1-1915, em que Manuel de Arriaga implora ao amigo Pimenta de Castro que o não abandone e a quem entrega de bandeja o governo do país, passando por cima da autoridade de Vítor Hugo de Azevedo Coutinho, o presidente do conselho de então. São, aliás, pungentes os adjectivos que Arriaga utiliza para se dirigir ao futuro ditador: «o teu austero e belo nome servirá para garantir a genuinidade do sufrágio, a conciliação e a paz na República e no exército».

Mas toda a obra mostra o decorrer da obra republicana no pós-Outubro de 1910: diferendos, cisões, ameaças, cartas de anónimos a vociferar contra a corrupção e a amoralidade da República. Sem esquecer a questão da própria bandeira rubra e verde que um amigo de Manuel de Arriaga faz questão de resumir num assertivo comentário datado de 1911:

Com esta carta envio-te o incluso estudo, que uma convicção, porventura ridícula do meu espírito, de acerto na solução, me faz considerar meu dever não a deixar desconhecida, tão profundamente se me encaixa na cabeça a ideia, ou antes o sentimento de que a bandeira verde-vermelha é a negação do sentir nacional, é um pavilhão sugestivo de ódios e de desunião, é tudo que há-de menos Português para simbolizar o velho venerando Portugal rejuvenescido, orgulhoso do seu Passado e transformado em anseio de felicidade, de Justiça, de Moralidade, de Progresso e de alegria vivificante de Paz e Prosperidade!
Não compreendo, não compreendo uma bandeira irritante do cérebro e que se não pode olhar por muito tempo sem estonteamento nervoso! Imaginemos um sujeito condenado a viver numa cela forrada de verde-vermelho! Seria textura que daria assunto científico para estudar a influência dessas cores conjuntas sobre o órgão visual com o tempo, que acabaria por enlouquecer a vítima! Seria um nunca acabar o desfiar de argumentos contra tais cores fundamentais! Perdoa este desespero sentido de um velho português. E perdoe-se-me a audácia da minha crítica e as pretensões ao meu projecto pela sinceridade do sentir, e pelos propósitos de ser tudo a que me abalancei, considerando um problema patriótico, que deve ser tratado como um problema democrático. Mil respeitos aos teus, e muito afectuosamente um abraço para ti do velho amigo

Pedro R. Folque

Nuno Resende

Fonte: Centenário da República

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