quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Dilecta Mea – A propósito da Santa Missa Apostólica

 


É notória a contínua defesa da Liturgia Tradicional da Igreja Católica que o Arcebispo Carlo Maria Viganò, antigo Núncio Apostólico nos Estados Unidos da América, tem vindo a fazer nas suas diversas intervenções. Com data de 2 de Janeiro, o Prelado escreveu um tocante testemunho sobre a Santa Missa tradicional e, em particular, acerca da graça que recebeu de redescobrir, cinco décadas depois da sua ordenação sacerdotal, este tesouro de Deus à Sua Igreja. O portal Dies Iræ divulga, em exclusivo para língua portuguesa, o escrito do Arcebispo Viganò.


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2 de Janeiro de 2022
Sanctissimi Nominis JESU


Vós, que vos permitis proibir a Missa Apostólica, alguma vez a celebrastes? Vós que, do alto das vossas cátedras de liturgia, pronunciais juízos perspicazes sobre a “Missa antiga”, alguma vez meditastes nas suas orações, nos seus ritos, nos seus gestos antigos e sagrados? Fiz-me esta pergunta várias vezes nos últimos anos: porque eu próprio, que conheço esta Missa desde criança; que, quando ainda usava calções, tinha aprendido a servi-la e a responder ao celebrante, quase a tinha esquecido e perdido. Introibo ad altare Dei. Ajoelhado nos gélidos degraus do altar, antes de ir para a escola, no Inverno. A suar debaixo da veste de acólito na canícula de certos dias de Verão. Tinha esquecido essa Missa, que foi também a da minha Ordenação a 24 de Março de 1968: uma época em que já se percebiam os sinais da revolução que, em breve, privaria a Igreja do seu tesouro mais precioso para impor um rito contrafeito.      

Pois bem, aquela Missa que a reforma conciliar cancelou e proibiu nos meus primeiros anos de Sacerdócio, permanecia como uma remota recordação, como o sorriso de uma pessoa querida que está longe, o olhar de um parente desaparecido, o som de um domingo com os seus sinos, as suas vozes amigas. Mas era algo sobre nostalgia, sobre juventude, sobre o entusiasmo de uma época em que os compromissos eclesiásticos ainda estavam para vir, quando todos nós queríamos acreditar que o mundo poderia erguer-se do pós-guerra e da ameaça do Comunismo com um renovado ímpeto espiritual. Queríamos acreditar que a prosperidade económica poderia, de alguma forma, ser acompanhada por um renascimento moral e religioso do País. Apesar da revolução de 1968, as ocupações, o terrorismo, as Brigadas Vermelhas, a crise do Médio Oriente. Assim, entre os mil compromissos eclesiásticos e diplomáticos, cristalizou-se na minha memória a recordação de algo que, de facto, permanecia por resolver, colocado “momentaneamente” de lado durante décadas. Algo que esperava pacientemente, com a indulgência que só Deus usa a nosso respeito.       

A minha decisão de denunciar os escândalos dos Prelados americanos e da Cúria Romana foi a ocasião que me levou a reconsiderar, sob uma luz diferente, não só o meu papel como Arcebispo e Núncio Apostólico, mas também a alma daquele Sacerdócio que o serviço no Vaticano, primeiro, e, depois, nos Estados Unidos tinha, de alguma forma, deixado incompleto: mais pelo meu ser sacerdote do que pelo Ministério. E o que não tinha compreendido até então tornou-se claro para mim através de uma circunstância aparentemente inesperada, quando a minha segurança pessoal parecia estar em perigo e me vi, contra a minha vontade, a ter de viver quase na clandestinidade, longe dos edifícios da Cúria. Foi então que essa abençoada segregação, que hoje considero como uma espécie de escolha monástica, me levou a redescobrir a Santa Missa Tridentina. Recordo bem o dia em que, em vez da casula, usei os paramentos tradicionais, com o cappino ambrosiano e o manípulo: recordo o temor que senti quando, após quase cinquenta anos, pronunciei aquelas orações do Missal que ressurgiam na minha boca como se as tivesse recitado até há pouco tempo antes. Confitemini Domino, quoniam bonus, em vez do Salmo Judica me, Deus do rito romano. Munda cor meum ac labia mea. Aquelas palavras já não eram as do acólito ou do jovem seminarista, mas as palavras do celebrante, de mim que, novamente, ousarei dizer pela primeira vez, estava a celebrar perante a Santíssima Trindade. É verdade que o Sacerdote é uma pessoa que vive essencialmente para os outros – para Deus e para o próximo –, mas também é verdade que se não tem consciência da sua própria identidade e não cultiva a sua própria santidade, o seu apostolado é tão estéril como o címbalo que tilinta.          

Estou bem ciente de que estas reflexões podem deixar impassíveis, se não até mesmo suscitar comiseração, aqueles que nunca tiveram a graça de celebrar a Missa de sempre. Mas o mesmo acontece, imagino, com aqueles que nunca estiveram apaixonados e que não compreendem o entusiasmo e o casto arrebatamento do amado para a sua amada, com aqueles que não conhecem a alegria de se perderem nos seus olhos. O pardo liturgista romano, o Prelado com o seu clergyman à medida e a cruz peitoral no bolso, o consultor da Congregação com a última cópia de Concilium ou de Civiltà Cattolica à vista de todos, olham para a Missa de São Pio V com os olhos do entomólogo (a ciência que estuda os insectos), examinando aquela perícope como um naturalista observa as veias de uma folha ou as asas de uma borboleta. Ou melhor, por vezes pergunto-me se não o fazem com a frieza do patologista que corta com o bisturi um corpo vivo. Mas se um sacerdote com um mínimo de vida interior se aproxima da Missa antiga, independentemente de já a ter conhecido ou de a estar a descobrir pela primeira vez, fica profundamente comovido pela composta majestade do rito, como se saísse do tempo e entrasse na eternidade de Deus.       

O que eu gostaria que os meus Irmãos no Episcopado e no Sacerdócio compreendessem é que essa Missa é intrinsecamente divina, porque se percebe o sagrado de uma forma visceral: é-se literalmente arrebatado até ao Céu, na presença da Santíssima Trindade e da Corte Celeste, longe do estrépito do mundo. É um canto de amor, em que a repetição dos sinais, das reverências e das palavras sagradas não tem nada de inútil, tal como a mãe nunca se cansa de beijar o seu filho, a esposa de repetir “amo-te” ao esposo. Esquece-se tudo, porque tudo o que nela se diz e canta é eterno, todos os gestos que se fazem são perenes, fora da história, e, no entanto, imersos num continuum que une o Cenáculo, o Calvário e o altar sobre o qual se celebra. O celebrante não se dirige à assembleia, com a preocupação de ser compreensível ou de se tornar agradável ou de aparecer à la page, mas a Deus: e, perante Deus, só existe o sentimento de infinita gratidão pelo privilégio de poder levar consigo as orações do povo cristão, as alegrias e as dores de tantas almas, os pecados e as faltas daqueles que imploram perdão e misericórdia, a gratidão pelas graças recebidas, os sufrágios pelos nossos caros defuntos. Estamos sós e, ao mesmo tempo, sentimo-nos intimamente unidos a uma interminável multidão de almas que atravessa o tempo e o espaço.   

Quando celebro a Missa Apostólica, penso que naquele mesmo altar, consagrado com as relíquias dos Mártires, celebraram tantos Santos e milhares de sacerdotes, usando as mesmas palavras que eu, repetindo os mesmos gestos, fazendo as mesmas inclinações e as mesmas genuflexões, usando os mesmos paramentos. Mas, acima de tudo, comungando o mesmo Corpo e Sangue de Nosso Senhor, ao Qual todos fomos assimilados na oferta do Santo Sacrifício. Quando celebro a Missa de sempre, dou-me conta, da forma mais sublime e completa, do verdadeiro significado do que a doutrina nos ensina. O agir in persona Christi não é uma repetição mecânica de uma fórmula, mas a consciência de que a minha boca profere as mesmas palavras que o Salvador pronunciou sobre o pão e sobre o vinho no Cenáculo; que, enquanto elevo ao Pai a Hóstia e o Cálice, repito a imolação que Cristo fez de Si mesmo na Cruz; que, ao comungar, consumo a Vítima sacrificial e me nutro de Deus, e não estou a participar num banquete. E comigo está toda a Igreja: a triunfante que se digna unir à minha oração suplicante, a purgante que a espera para abreviar a permanência das almas no Purgatório, a militante que se fortalece na batalha espiritual diária. Mas se, de facto, como professamos com fé, a nossa boca é a boca de Cristo, se, de facto, as nossas palavras na Consagração são as de Cristo, se as mãos com que tocamos a Hóstia santa e o Cálice são as mãos de Cristo, que respeito devemos ter pelo nosso corpo, conservando-o puro e incontaminado? Que melhor incentivo para permanecer na Graça de Deus? Mundamini, qui fertis vasa Domini. E com as palavras do Missal: Aufer a nobis, quæsumus, Domine, iniquitates nostras: ut ad sancta sanctorum puris mereamur mentibus introire.   

O teólogo dir-me-á que esta é doutrina comum e que a Missa é exactamente isto, independentemente do rito. Não o nego, racionalmente. Mas embora a celebração da Missa Tridentina seja um constante apelo a uma continuidade ininterrupta da obra da Redenção coberta de Santos e Beatos, o mesmo não me parece acontecer com o rito reformado. Se olho para a mesa versus populum, vejo ali o altar luterano ou a mesa protestante; se leio as palavras de Instituição em forma de narração da Última Ceia, sinto ali as mudanças do Common Book of Prayer, de Cranmer, e o serviço de Calvino; se folheio o calendário reformado, encontro ali expurgados os próprios santos que exterminaram os hereges da Pseudo-Reforma. E assim para os cânticos, que horrorizariam um católico inglês ou alemão: ouvir debaixo das abóbadas de uma igreja os coros daqueles que martirizavam os nossos sacerdotes e espezinhavam o Santíssimo Sacramento, desprezando a “superstição papista”, deveria fazer-nos compreender o abismo entre a Missa católica e a sua contrafacção conciliar. Sem falar da língua: os primeiros a abolir o latim foram os próprios hereges, em nome de uma maior compreensão dos ritos para o povo; um povo que enganavam, contestando a Verdade revelada e propagando o erro. Tudo é profano no Novus Ordo. Tudo é momentâneo, tudo acidental, tudo contingente, variável, mutável. Não há nada de eterno, porque a eternidade é imutável, como imutável é a Fé. Como imutável é Deus.           

Há um outro aspecto da Santa Missa tradicional que gostaria de salientar e que nos une aos Santos e aos Mártires do passado. Desde o tempo das catacumbas e até às últimas perseguições, onde quer que um sacerdote celebre o Santo Sacrifício, mesmo num sótão ou numa adega, no mato, num celeiro ou mesmo numa carrinha, ele está misticamente em comunhão com aquela multidão de testemunhas heróicas da Fé e naquele altar improvisado pousa-se o olhar da Santíssima Trindade, diante desse genuflectem em adoração todas as multidões angélicas e para ele olham as almas purgantes. Também nisto, sobretudo nisto, cada um de nós compreende como a Tradição cria um laço indissolúvel através dos séculos, não só na ciosa guarda desse tesouro, mas também no enfrentar as provações que isso implica, até mesmo a morte. Perante este pensamento, a arrogância do presente tirano, com os seus delirantes decretos, deve fortalecer-nos na fidelidade a Cristo e fazer-nos sentir parte integrante da Igreja de todos os tempos, porque não se pode ganhar a palma da vitória se não se estiver pronto para combater o bonum certamen.  

Gostaria que os meus Irmãos ousassem o impensável: gostaria que se aproximassem da Santa Missa Tridentina não para se comprazerem com a renda de uma alva ou o bordado de uma casula, ou por uma mera convicção racional sobre a sua legitimidade canónica ou sobre o facto de nunca ter sido abolida; mas com o temor reverencial com que Moisés se aproximou da sarça ardente: sabendo que cada um de nós, ao descermos do altar depois do último Evangelho, está, de alguma forma, transfigurado interiormente, porque ali encontramos o Santo dos Santos. É só ali, sobre aquele místico Sinai, que podemos compreender a própria essência do nosso Sacerdócio, que é doação de si mesmo a Deus, antes de mais; oblação de si mesmo, juntamente com Cristo Vítima, para a maior glória de Deus e a salvação das almas; sacrifício espiritual que retira força e vigor da Missa; renúncia de si, para dar lugar ao Sumo Sacerdote; sinal de verdadeira humildade, na aniquilação da própria vontade e no abandono à vontade do Pai, seguindo o exemplo do Senhor; gesto de autêntica “comunhão” com os Santos, na partilha da mesma profissão de Fé e do mesmo rito. E eu gostaria que esta “experiência” não fosse apenas para aqueles que celebram o Novus Ordo há décadas, mas especialmente para os jovens sacerdotes e para aqueles que desempenham o seu Ministério na linha da frente: a Missa de São Pio V é para espíritos indómitos, para almas generosas e heróicas, para corações ardentes de Caridade por Deus e pelo próximo.         

Sei-o bem: a vida dos sacerdotes de hoje é feita de mil provações, de stress, do sentimento de estarem sozinhos a combater contra o mundo, do desinteresse e do ostracismo dos Superiores, de um lento desgaste que distrai do recolhimento, da vida interior, do crescimento espiritual. E sei muito bem que este sentimento de cerco, de se encontrar como um marinheiro sozinho a ter de governar um navio em tempestade, não é apanágio dos tradicionalistas nem dos progressistas, mas é o destino comum de todos aqueles que ofereceram as suas vidas ao Senhor e à Igreja, cada um com as suas misérias, com os problemas económicos, as incompreensões com o Bispo, as críticas dos irmãos, os pedidos dos fiéis. E aquelas horas de solidão, em que a presença de Deus e a companhia da Virgem parecem desaparecer, como na noite escura de São João da Cruz. Quare me repulisti? Et quare tristis incedo, dum affligit me inimicus? Quando o Demónio serpenteia maliciosamente através da Internet e da televisão, quærens quem devoret, aproveitando-se traiçoeiramente do nosso cansaço. Nesses casos, que todos enfrentamos como Nosso Senhor no Getsémani, é o nosso Sacerdócio que Satanás quer atacar, apresentando-se persuasivamente como Salomé perante Herodes, pedindo-nos como presente a cabeça do Baptista. Ab homine iniquo, et doloso erue me. Na provação, somos todos iguais: porque a vitória que o Inimigo quer trazer de volta não é apenas sobre as nossas pobres almas de baptizados, mas sobre Cristo Sacerdote, do Qual trazemos a Unção.   

Por esta razão, hoje mais do que nunca, a Santa Missa Tridentina é a única âncora de salvação do Sacerdócio Católico, porque nela o sacerdote renasce, todos os dias, naquele tempo privilegiado de íntima união com a Santíssima Trindade e dela retira as graças indispensáveis para não cair no pecado, para progredir no caminho da santidade, para reencontrar o são equilíbrio com que enfrentar o Ministério. Acreditar que tudo isto pode ser descartado como uma mera questão cerimonial ou estética significa não ter compreendido nada da própria Vocação. Porque a Santa Missa “de sempre” – e é-o realmente, como desde sempre é hostilizada pelo Adversário – não é uma amante complacente que se oferece a qualquer um, mas uma esposa ciumenta e casta, como ciumento é o Senhor.   

Quereis agradar a Deus ou àqueles que vos afastam d’Ele? A questão, no fundo, é sempre esta: a escolha entre o suave jugo de Cristo e as correntes da escravidão do adversário. A resposta tornar-se-á clara para vós quando também vós, maravilhados com este incomensurável tesouro que vos foi escondido, descobrirdes o que significa celebrar o Santo Sacrifício não como patéticos “presidentes da assembleia”, mas como «servidores de Cristo e administradores dos mistérios de Deus» (1 Cor 4, 1).              

Pegai no Missal, pedi ajuda a um sacerdote amigo e subi ao monte da Transfiguração: Emitte lucem tuam et veritatem tuam: ipsa me deduxerunt, et adduxerunt in montem sanctum tuum, et in tabernacula tua. Como Pedro, Tiago e João, exclamareis: Domine, bonum est nos hic esse, «Senhor, é bom estarmos aqui» (Mt 17, 4). Ou, com as palavras do Salmista que o celebrante repete no Ofertório: Domine, dilexi decorem domus tuæ, et locum habitationis gloriæ tuæ.         

Quando o tiverdes descoberto, ninguém vos poderá tirar aquilo pelo qual o Senhor já não vos chama servos, mas amigos (Jo 15, 15). Ninguém será capaz de vos convencer a renunciar, forçando-vos a contentar-vos com a sua adulteração provocada por mentes rebeldes. Eratis enim aliquando tenebræ: nunc enim lux in Domino. Ut filii lucis ambulate. «É que outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Procedei como filhos da luz» (Ef 5, 8). Propter quod dicit: Surge qui dormis, et exsurge a mortuis, et illuminabit te Christus. «Por isso se diz: “Desperta, tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e Cristo brilhará sobre ti”» (Ef 5, 14).           

 Carlo Maria Viganò, Arcebispo

Fonte: Dies Iræ

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