terça-feira, 13 de abril de 2021

Quando o dinheiro começa a escassear

O economista norte-americano John Kenneth Galbraith disse numa entrevista a El País, publicada em 22-8-1992, que “os problemas surgem quando não há dinheiro”. Também Margaret Thatcher costumava dizer, na mesma linha de raciocínio, que “o socialismo dura até acabar o dinheiro”. É o que estamos a viver neste momento e que explica a aparente tensão entre Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa por causa da promulgação dos três diplomas da Assembleia da República que contemplam “medidas de apoio social urgentes”. Tornou-se claro que o Governo está no limite da concessão de apoios ao número cada vez maior de necessitados com a crise sanitária.

Portugal está referenciado como dos países europeus que men
os verbas disponibilizou nos apoios à economia. Em 14-1-2021, o presidente da CIP, António Saraiva, lamentava que os apoios às maiores necessidades que as empresas registam chegassem tarde, quando deviam ter sido antecipados. Lembrou que a CIP apresentara, em Março de 2020, propostas de apoios a fundo perdido e que “o Governo não as quis entender, não as quis subscrever”. Só em 10-12-2020 o Governo anunciava 7.200 milhões de euros para apoio à economia e emprego, dos quais mais de 1.400 milhões seriam a fundo perdido. Um mês depois, em 14-1-2021, o ministro da Economia apresentava “novos apoios”, mas sem dizer quanto é que somavam ao que anteriormente fora anunciado. Disse, surpreendentemente, que não havia nada a inventar, apenas “o que é preciso é acelerar o que já existe”.


O Governo voltava a apresentar, em 12-3-2021, um reforço de apoios que se traduziam em sete mil milhões e, mais uma vez, desse valor mil milhões seriam concedidos a fundo perdido. No entanto, em 14-3-2021, o comentador Marques Mendes arrasou na SIC esse plano económico e social, dizendo que “é uma desilusão”. Apontou “a insuficiência dos apoios económicos directos”, sublinhando que “são uma gota no oceano” e chamou a atenção para a burocracia e ineficiência da máquina do Estado. Atalhou: “Uma coisa é o anúncio das medidas. Coisa diferente é o dinheiro chegar às empresas. Ora, a verdade é que as queixas são mais do que muitas: empresas e pessoas queixam-se que os apoios ou não chegam ou chegam tarde e a más horas. É tudo lento, confuso e burocrático”.


Moratórias: uma bomba ao retardador


O problema das moratórias é considerado uma bomba ao retardador que nos ameaça. O valor das moratórias ascende a 44 mil milhões de euros, divididos por 24 mil milhões pelas empresas e 20 mil milhões pelas famílias, segundo informação do Banco de Portugal, em 24-3-2021. A grande incógnita é que ninguém sabe como vai ser a solução. Como é sabido, a maioria das moratórias termina em Setembro e, se nada for feito até lá, os planos de pagamentos aos bancos serão retomados. A decisão de prorrogação é europeia, no âmbito do European Banking Authority (EBA), mas essa eventualidade não está colocada neste momento, segundo informou no Parlamento o governador do Banco de Portugal, Mário Centeno. Assim sendo, que mecanismos alternativos serão criados é o que não se sabe.

O diferendo entre Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, devido à divergência quanto à promulgação dos três diplomas de apoio social aprovados pela oposição no Parlamento, vai chegar ao Tribunal Constitucional (TC), por decisão do primeiro-ministro. Costa entende que Marcelo não respeitou o princípio da “lei-travão” que impede o aumento de despesas e a diminuição de receitas e, por isso, o Governo dirigiu àquele tribunal um pedido de fiscalização sucessiva com carácter de urgência, ciente de que a razão está do seu lado. Pelo menos, viu os constitucionalistas alinhados na crítica contra à promulgação presidencial.

Sendo Marcelo Rebelo de Sousa, um reputado constitucionalista, é caso para perguntar o que o terá levado a tomar uma decisão que, à partida, sabia que provocaria larga controvérsia pelas razões referidas. A primeira explicação foi dada na nota de Belém, de 28-3-2021, que justifica a promulgação. Começa por ser o primeiro a reconhecer que as leis da AR devem respeitar a Constituição mas, conforme diz também na referida nota, “para o Presidente da República é visível o sinal político dado pelas medidas em causa, e não se justifica o juízo de inconstitucionalidade dessas medidas”. E acrescenta: “O que, aliás, parece ser confirmado pela diversa votação do partido do Governo em diplomas com a mesma essência no conteúdo, ora abstendo-se ora votando contra.”


“É o direito que serve a política”


Após as críticas à promulgação, com especial destaque para os constitucionalistas, e a decisão de Costa de enviar os diplomas para o TC, invocando, em 31-3-2021, que “lei é lei”, Marcelo deu uma segunda resposta, através de Ângela Silva, no Expresso, em 31-3-2021, ao afirmar que “é o direito que serve a política, não é a política que serve o direito”. Ou seja, com esta máxima, Marcelo pretende afastar o TC do controlo preventivo ou sucessivo da constitucionalidade das leis financeiras ou de apoios sociais. De resto, na aludida nota, diz-se que o Presidente podia enviar os diplomas ao TC para fiscalização preventiva, mas tem considerado, “desde o primeiro mandato, e sobretudo durante a presente crise, só o dever fazer no caso de não ser, de todo em todo, possível uma interpretação dos diplomas que seja conforme à Constituição.” E observa, de seguida: “Quando é possível essa interpretação conforme à Constituição, tem optado por promulgar, tornando claro em que termos, no seu entender, os diplomas devem ser aplicados por forma a respeitarem a Lei Fundamental.”

Uma terceira explicação foi dada, depois, por António Lobo Xavier, conselheiro de Estado nomeado por Marcelo. Lembrando as cativações de Centeno, disse na TVI24, em 31-3-2021, que “não se pode saber, com a prática orçamental deste Governo, se uma lei produz aumento de despesa ou não”, até porque, consoante referiu, “nenhum Orçamento deste Governo chegou ao limite da despesa”. Recordou que, em Junho do ano passado, durante o debate do Orçamento Suplementar, a oposição também se juntou para aumentar o limite da despesa em relação à proposta do Governo – ainda em sede de negociação parlamentar – e o Governo optou por não pedir a fiscalização da constitucionalidade. Lobo Xavier contou que, então, o Presidente perguntou, por carta ao primeiro-ministro, se iria invocar a “norma-travão” e Costa respondeu, dizendo que não, pois conseguia acomodar a despesa e “não queria abrir um conflito institucional com a AR”.

A maleabilidade de Costa


No sábado, 3 de Abril, conhecemos uma quarta explicação, agora transmitida por Marcelo. Depois de afirmar que, quando promulga as leis, o faz para as “salvar”, justificou: “Foi exactamente o que fiz relativamente às três leis. Pensei que a crise em Janeiro e Fevereiro foi pior do que no ano passado e que as medidas têm aspectos bons e maus mas, no geral, são medidas com aspectos positivos. Encontrei um entendimento da Constituição que permite salvá-las que é caberem nos limites gerais do Orçamento do Estado em função da execução que o Governo vier a fazer. Foi a mesma orientação do ano anterior e promulguei”.

Neste contexto, ressaltou que o Governo, desta vez, não seguiu a orientação do ano passado, nomeadamente no Orçamento Suplementar.

Provavelmente, atendendo aos antecedentes, Marcelo teria a expectativa de que fosse possível ao Governo fazer a acomodação dos 40 milhões de euros/mês para o pagamento dos novos apoios sociais, preocupação que o mobiliza, mas Costa não quis entender assim, invocando a defesa de um princípio constitucional. O valor total desses apoios está estimado pelo Governo em 250 milhões de euros. A maleabilidade de Costa com as leis e a Constituição pode ser medida por declarações que vai fazendo ao longo do tempo. Em 27-4-2020 (Lusa) ao comentar as dúvidas de constitucionalistas sobre as medidas de confinamento a adoptar após o estado de emergência, Costa respondeu que eram para manter, “diga a Constituição o que diga”.

Para quem vive na angústia do empobrecimento rápido – e são dois terços das famílias – e para quem já precisou de recorrer à Rede de Emergência Alimentar, que auxilia 80 mil famílias, esta discordância entre o Presidente e o Governo faz pouco sentido, quando, a esse nível não se desentendem com os milhões consignados para a TAP, Novo Banco, Presidência Portuguesa da União Europeia ou projectos megalómanos já delineados para absorver os dinheiros da bazuca. Também não percebem que o Governo perca milhões em receita fiscal, por razões obscuras, com a venda das barragens da EDP. São 130 mil portugueses os beneficiados com os três diplomas legais aprovados que terão agora de aguardar a decisão do TC. Enquanto isso, soube-se que mais de 37 mil empresas estão sem acesso a apoios Covid, segundo o JN na edição de 2 de Abril. Onde está a justiça social? Na Grécia, o Governo oferece 330 milhões de euros de ajuda à reabertura dos restaurantes e bares.

Na discussão política à volta da promulgação de Marcelo e da reacção de Costa, impressiona ainda que colunistas, comentadores, analistas, jornalistas, estejam apenas obcecados com jogos de poder, de quem ganha, de quem perde ou de quem é “genial” e de quem se revela “inapto”. É uma discussão idêntica a muitas outras, própria de um grupo que fala em circuito fechado para o poder. O que não se vê é uma preocupação com aqueles que passaram a ter vidas muito difíceis, aqueles que tiveram de perder a vergonha e, para sobreviver, se viram forçados a recorrer à ajuda alheia, aqueles que, como perdedores, vivem numa enorme ansiedade quanto ao futuro. Por agora, o Governo acena-lhes com uma bazuca de dinheiro, mas não passa de uma miragem para entreter pategos.


Francisco Menezes

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