quinta-feira, 27 de maio de 2021

Chafariz D’El-Rei

 


Um dos mais antigos chafarizes de Lisboa, senão o mais antigo, está hoje seco. É-lhe atribuída uma origem anterior à nacionalidade e uma existência que se confunde com esta. A história e a vida que se estruturaram em seu redor ainda são perceptíveis graças às muitas representações que o retratam ao longo dos séculos. Uma delas foi mesmo objecto de polémica há relativamente pouco tempo. Uma placa ali colocada testemunha que foi “EDIFICADO NO SECULO XIII FOI REFORMADO PELO REI D. DINIS RECONSTRUIDO NO ANO DE 1747 REPARADO DEPOIS DE 1755 E MELHORADO NOS MEADOS DO SECULO XIX.”


Apesar das melhorias e de as todas alterações sofridas, o chafariz D’El-Rei já não dessedenta ninguém. Nada corre das suas bicas. Onde se esperava fluidez e frescura encontra-se, afinal, secura e aridez. Em vez de fonte de vida, é um cenário. Passado sem presente nem futuro. Uma peça de museu com uma única função: recordar o que foi e o que ainda poderia ser. Porque a água continua a correr no seu interior.


Mais do que uma memória de um outro tempo, o chafariz D’El-Rei encerra toda a potencialidade da sua regeneração. Havendo vontade para isso, a estrutura bloqueada pode conhecer a revivificação e reencontrar o caminho de serviço que lhe dá sentido.


A fonte seca, privada da água que lhe conferia um destino e da coroa sobre as armas portuguesas que sublinhava a sua identidade, é visitada por muitos que ali param e que tentam decifrar a sua função. Não é fácil compreendê-la sem que ninguém dali beba.


O seu nome mantém-se porque o escopro da destruição demora mais a erodir as palavras que as pedras. Por muito que o sequem e que o destruam, o chafariz é do Rei. Cento e dez anos passados da imposição da república, aquela ainda é a sua fonte.


O chafariz D’El-Rei espelha o nosso estado colectivo. Em vez de comunidade viva, alimentada pela ligação constante e natural com uma chefia do Estado que o corporiza, somos uma memória mal cuidada entregue a zeladores de turno e às respectivas personalidades e inclinações.


Os verbos “ser” e “estar” não são sinónimos neste caso: o Rei é e um Presidente da República está. E nunca está o tempo suficiente para ser, nem é o bastante para efectivamente estar. As sucessivas passagens presidenciais e a sobrepartidarização da figura que, sendo política, deveria permanecer acima dos políticos, priva-nos da continuidade que facilitaria todas as mudanças. Entorpece e seca os relacionamentos, ajuda a cavar antagonismos e amplifica as incompreensões mútuas.


Mais do que fons honorum, a monarquia é fons vitae. Sem um chafariz que a todos congregue, restam-nos poços particulares mais ou menos exclusivos, mais ou menos excludentes. A atomização social que hoje experimentamos, agravada pela pandemia, recomenda a revisitação da história e dos espaços comuns, a recuperação da política no que ela tem de mais nobre e a revitalização da ligação entre gerações. Uma chefia do Estado suficientemente estável para o permitir e suficientemente enraizada para não precisar de se justificar saciaria a nossa sede de legitimidade e de futuro.


João Vacas


Fonte: Real Associação de Lisboa

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